Time Lapse – Um salto no escuro

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Está tudo certo. Já fecharam os meus olhos e agora é só esperar o tempo passar. Na verdade nem sei se a palavra “esperar” cabe aqui no sentido de quem espera. Tem mais lugar se pensado como a ação de ter esperança.

Se tenho a esperança de que o tempo vai passar, significa que quero sobreviver a essa loucura. Mergulhar em um sono profundo que vai durar oitenta e dois anos é mesmo um desafio ao qual somente um louco como eu estaria disposto a submeter-se.

Não foi uma decisão tomada num rompante. Foi mais rápido que isso. Quando vi a notícia de que o governo havia autorizado a Agência Ánima a buscar voluntários para esse experimento, logo pensei: isso é pra mim. Imediatamente cliquei no link que dizia “quero acordar em 2100”.

Não tenho herdeiros. Não tenho família. Minha vida está uma merda mesmo. Encaixei no perfil de voluntário: “um fodido, do gênero masculino, saudável, com idade entre 25 e 35 anos que não tenha muita perspectiva de vida no momento, mas que queira continuar jovem por muito tempo…”.

Caguei pro presente…

Como tive que escrever a lista dos meus pertences que serão colocados em uma caixa grande a ser aberta somente quando eu acordar (assim espero) em 2100, passei os últimos três dias catalogando a tralharada toda:

Violão Takamini ano 1988, uma relíquia; coleção de livros do Charles Bukovsky, 16 ao todo, o melhor da literatura dos sem rumo; dois dentes de ouro que herdei do meu avô; cinco pares de tênis velhos com os cadarços arrebentados; cinco botões de casacos que já perdi; um cinto preto de couro com fivela enferrujada; uma máquina de escrever Olivetti com cáries; um banquinho mocho com uma perna mais curta que as outras; meu álbum incompleto de figurinhas da copa de 2014, só pra me lembrar que tudo o que está ruim pode um dia piorar; um caderno de anotações amarrotadas; alguns documentos pessoais; dez edições da revista playboy, isso vai valer uma nota no futuro; poucas fotos da minha infância; uma xícara sem asa; um bule e um coador.
Eu gostaria de separar também algumas lembranças, até porque não sei se minha memória estará intacta no outro lado desse abismo onde vou me atirar daqui a pouco, mas não deu tempo. Eu teria gravado um áudio ou escrito alguma coisa. Mas também não sei se vou querer me lembrar. Tem sido tudo tão insólito, demasiadamente insosso, sem gosto, um asco. Um saco!

Ouço uma voz:

– Senhor Matuza, tudo bem? – Matuza é o nome que escolhi pra participar do programa – O Senhor está pronto para o início dos procedimentos? Vamos injetar o liquido anticongelante em suas veias, reduzir aos poucos os movimentos do seu coração e iniciar o procedimento de criopreservação. Todo o processo é indolor. Estaremos aqui todos os dias, todas as horas dos próximos oitenta e dois anos.

Esse cara tá de brincadeira. Daqui a oitenta dois anos ele vai estar mais gagá do que a Dercy Gonçalves. Eles estão é querendo me enganar. Mas tudo bem. Faz parte do jogo. Eles fingem que gostam de mim e eu finjo que acredito. Esse troço que colaram sobre minhas pálpebras não me deixa abrir os olhos. Bem que eu queria dar uma espiada na cara desse mentiroso de merda.

Agora uma voz feminina, quase sensual, quase encorajadora, me diz para me acalmar que o anestésico vai entrar em ação aos poucos. Vou sentindo a gostosura daquela voz. Estou me sentindo mais tranquilo e vou mergulhando no barato do Michael Jackson nos braços de Morfeu. A  voz vai sumindo e sumindo e…

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– Senhor Matuza, tudo bem? O Senhor está me ouvindo? Sinto um gosto ruim na boca e aos poucos vou recuperando os sentidos que me fazem vivo.


– Já sei. A experiência não deu certo. Faltou luz?


– Nada disso, Senhor Matuza. Seja bem vindo ao século XXII.


– Vocês estão de brincadeira. Acabei de apagar naquela banheira de piguim que me colocaram.


– Correto, Senhor Matuza. Como a atividade cerebral é interrompida completamente durante a criopreservação, o paciente não consegue ter a noção do tempo decorrido entre o início e o fim do processo. Sua ressuscitação ocorreu de forma tranquila, conforme o planejado. Hoje é o dia 21 de janeiro de 2100.

Merda! Não é que o troço funciona mesmo? O que será que esses caras tem reservado pra mim nesse mundo novo?


Roupas novas, um pouco simples demais, tudo cinza. Um conjunto bem elegante. Deram uma ajeitada no meu cabelo. Tiraram a minha barba. Está tudo ali. Eu só sinto uma dor de cabeça fraquinha mas constante. Parece que tem um porco fuçando nos meus miolos.


– Uma pequena tontura e dores de cabeça serão normais nas primeiras 48 horas. Não se preocupe Senhor Matuza.
Esses caras já estão me enchendo o saco.

Esses caras já estão me enchendo o saco.


– Agora precisamos apresentá-lo ao novo mundo. Passe por favor.


Uma porta automática se abre e eu vou caminhando na frente em direção a um hall todo iluminado. Essas luzes me incomodam. Um homem completamente sem cabelos vem em minha direção. Como ele é o único que usa uma cor diferente, está de verde quando todos os outros, inclusive eu, estamos de cinza, imagino que seja o dono dessa porra toda.


Que bosta! Onde eu fui me meter.


Esse esquisitão me pega pela mão e vai me levando pra um lugar aberto, na rua. Um jardim bonito. Parece aqueles casamentos de bacanas. Com muita gente. Um povo esquisito mesmo. Me olham como se eu fosse um alienígena. Aí, pelo discurso do careca fodão, eu fico sabendo que sou o primeiro. Não que não tenham tentado antes. É que os outros não acordaram.  Que sorte!


– Senhoras e Senhores. Eis aqui a prova de que o tempo pode ser vencido. Com o passar dos anos, a Corporação Ánima conseguiu evoluir em muito o processo de criopreservação da vida humana, sendo hoje mais de mil voluntários em curso. Alguns estão programados para acordar daqui a quinhentos anos.


Todos aplaudem. Toca uma música chata que mais parece um bate-estacas  de festa Rave. Já sei. Isso é uma festa Rave. Estão pregando uma peça em mim. Esses caras são foda mesmo. Tudo isso? Não acredito.


Aí uma mulher bonita se aproxima e me leva até uma sala onde  começam a passar imagens em um telão. Cada minuto desse filme representa uns 10 anos da história recente. Em menos de 10 minutos me mostram tudo o que aconteceu enquanto eu dormia. Que sorte que eu tive. Só deu merda. Aquele pôrra louca do Trump quase acabou com o mundo. E o bosta do presidente da Rússia, que de tão narcisista decidiu atacar a China, seu aliado. Os chineses não se contentaram e colocaram satélites armados com laser no espaço. Aí quase que eu ia descongelar mesmo era no  fogo do inferno. Depois desses loucos, vieram os pacifistas e humanistas de novo, aí vieram mais uns loucos e agora dizem que está tudo bem. Espero que sim, senão eu volto praquela banheira de gelo e digo que me acordem só lá pelo ano três mil.


Estou quase acreditando que é tudo verdade. Mas pelo menos essa mulher é bonita. Ela sorri pra mim. Não sei quais as intenções dela, mas espero que transar não tenha caído em desuso nesse tempo.


– E aí bonitona. Você vem sempre aqui? Que tal uma bebidinha pra quebrar o gelo?

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