Aquilo era um ritual que acontecia todos os dias.
Lembro-me pouco dele. Mas das vagas cenas que consegui guardar, apesar da tenra idade, essa que ocorria diariamente após o almoço era especialmente saborosa.
Meu avô, lento e calmo, retirava-se da mesa onde todos almoçávamos e dirigia-se à área. Chamávamos de área, uma varanda que circundava uma lateral da velha casa. Ali ele acomodava-se confortavelmente em sua cadeira de balanço, daquelas com assento de palha. Tirava do bolso o pequeno canivete prateado e, ao mesmo tempo em que observava a paisagem esverdeada, começava lentamente o ritual.
Esse ritual consistia em descascar aquela fruta com uma técnica toda especial para depois saboreá-la.
Eu, com cinco anos de idade, ficava sentado em um banquinho ao lado dele, esperando. Não estava interessado na fruta, mas nas sobras e na ferramenta. Aquele canivete prateado para mim já era um instrumento mágico. A lâmina desgastada pelo tempo e pelas pedras de amolar, cortava mais que o vento sul na esquina de casa.
Eu sentia o cheirinho daquele jato ácido do vapor cítrico que a fruta soltava quando a lâmina fazia o primeiro talho. Dali para frente era um giro perfeito da esfera de cor amarelada e, na outra mão, o canivete prateado, firme, impiedoso, separando com cuidado a casca da polpa, sem deixar aquela áurea branca que protege a carne da fruta, da acidez da casca.
Parece que ainda consigo sentir o perfume espalhado pelo ar, misturado com a poeira que levantava do leito da estrada cada vez que passava um carro. Não eram muitos no início dos anos 70, que perambulavam por aquele trecho de reta que terminava lá na casa do Seu Zé Rato.
Ia assim até o final. Vagarosamente girando e girando. O corte era tão perfeito que a roupa da fruta ficava quase intacta. Chegando na outra calota da esfera, ele terminava o corte e me mostrava aquela espiral perfeita que eu, cuidadosamente tratava de montar novamente como uma nova fruta, só que dessa vez, sem a polpa dentro.
Essa era a mágica. Descascar, comer e depois ainda sobrar um fruto quase perfeito, sem o conteúdo.
Me divertia com isso. Era como um brinquedo de montar.
Aí ele acendia um palheiro e me deixava brincar um pouco com o canivete prateado. Com aquela sobra do fruto e alguns pedacinhos de lascas de madeira, eu fabricava carrinhos, móveis e até bonecos.
Ouvia o ronco dele, que se entregava aos braços de Morfeu após apagar o palheiro e esperava o “ônibus da Uma” chegar. Esse coletivo quase nunca passava no horário. Também não importava muito, pois o tempo corria diferente, bem mais sem compromisso. Essa era a senha para ele acordar e voltar às suas tarefas vespertinas no balcão do bar do hotel.
São só alguns fragmentos da minha infância que consigo trazer de volta, juntamente com aromas e imagens descoloridas daquela varanda marrom, do prateado do canivete, do pó da estrada, do balcão do bar e da doçura que eram as férias no Rio Bonito.