
Zé…
Zé, como é conhecido por todos, tem orgulho de seu nome. Nome simples como ele mesmo. Fácil de lembrar e, principalmente rápido. Quase na velocidade da luz: apertou o interruptor a luz acendeu. Abriu a boca, já saiu: Zé!
“Esse cara é bom”, o pessoal dizia. Também, é tudo o que se espera de um almoxarife: quieto e eficaz. Lembra de tudo facilmente e, principalmente, é rápido. Quase na velocidade da luz. É só dizer o nome do item e lá está ele com a localização da peça na cabeça, e daí para estar em cima do balcão é só um piscar de olhos.
Ali do lado, no chão da fábrica, o pessoal faz máquinas o dia inteiro. Isso é, fabricam máquinas. Ou produzem, ou manufaturam, ou montam máquinas. Como quiserem os entendidos. São equipamentos de panificação, nome mais bonito que a turma do marketing costuma usar para poder vender. Mas pra esses aqui, do mundo da produção, isso é tudo máquina. Máquina de amassar massa, de cortar massa, de enrolar massa, de transportar massa. Haja massa. E no final, essa massa toda vira pão. Pão, simples como Zé. Rápido. Tá todo dia ali. É só pedir que ele vem.
Pois é.
É isso.
Simples como o Zé.
E essa roda gira. Todo dia tem pão. Pra ter pão precisa trigo, água, fermento e máquinas. E pra ter máquinas precisa peças. Muuuuiiiiiitas peças. E é aí que entra o Zé. Ele não fabrica as peças. Ele guarda as peças e depois entrega para quem pedir.
“Ô Zéééé… Me dá aí dois rolamento do êxo principal da amassadêra de trinta quilo.” Gritou o Seu Aladir. É assim que o pessoal faz. Chega no balcão do almoxarifado e vai logo gritando para o Zé. Como ele sabe, de cabeça, que essa “amassadêra de trinta kilo” é o modelo Órium 3572, é fácil lembrar que os “rolamento” que o Seu Aladir está pedindo são na verdade os componentes RL276573-A e o RL276573-B. Simples assim.
Mas o Zé não se acha importante por causa disso. Lembrar de código de peça é o trabalho dele. Ele considera que seu trabalho é importante porque sente-se o próprio semeador de máquinas. Se para plantar trigo é preciso sementes de trigo, para fabricar máquinas é preciso sementes de máquinas, isto é, peças. E quem planta essas sementes no chão de fábrica é o Zé. Tá bom, nesse “chão” não tem terra, adubo, arado e trator. Tem tornos mecânicos, fresadoras, furadeiras, soldadoras, etc. Mas é chão. Tem pessoas trabalhando ali.
E tem mais, o trabalho do Zé acaba afetando toda uma sociedade. Mais ainda: toda a economia global. Simples assim: para um país ir para a frente, as pessoas precisam trabalhar com saúde. Para ter saúde é preciso comer pão, pelo menos no café da manhã. Para ter pão, é preciso ter padarias. E aí vem as máquinas, as peças e o Zé.
“Esse cara é bom”. Mas além de ser bom, ele contribui para o bom funcionamento da economia global.
Esse é o Zé que se vê. Que o pessoal vê. É o homenzinho quieto, rápido e obediente lá do almoxarifado da planta número 15 das indústrias Universo.
Pensando assim, considerando que esse grupo empresarial tem mais de 3.000 funcionários e que a participação da indústria de máquinas de panificação na composição do PIB nacional é de zero vírgula zero zero zero zero zero zero zero trinta e nove por cento, e que esse paisinho de merda é um primo pobre dos emergentes da terceira geração, o Zé, o nosso Zé, para a economia global é, com muita sorte, a mosca do cocô do cavalo daquele cara que é primo do amigo do peãoz que trabalha para o ferreiro que assentou a ferradura na pata do cavalo do bandido.
E o Zé que não se vê? Como ele é? Interessa para nós?
Vamos ver se interessa.
Acontece que o Zé, tem um dom especial. A Empatia. Só que não é a empatia voluntária. A involuntária. Isso é, ele tem a capacidade, ou a infelicidade de colocar-se no lugar do outro, mesmo sem querer. Sentir o que o outro está sentindo. Viver o que o outro está vivendo.
E como isso acontece? Bem, há um gatilho que ele sempre evita. Esse gatilho é aquilo que chamamos corriqueiramente de “olho no olho”. Apesar de ser um indivíduo socialmente (parcialmente) bem resolvido, o Zé evita ao máximo olhar nos olhos das pessoas. Ele é envergonhado? É mal-humorado? É orgulhoso? Não. Nada disso. É que ao cruzar o olhar com outra pessoa, por alguns segundos que seja, contanto que essa pessoa também fixe o olhar nos olhos do Zé, uma revelação tem início: o Zé começa a sentir as inquietações, as angústias, as paixões e mesmo as alegrias do outro através de suas lembranças. Não só sentir, mas viver. Isso é mais do que empatia. É como sonhar acordado. É receber um mundo de emoções não esperadas e ainda ter que dar um jeito de acomodar essa nova “carga” na caçamba de suas próprias emoções.
Por isso que o Zé evita olhar fundo nos olhos das pessoas. Não é sempre que acontece essa mágica. Aliás é um pouco raro, até porque ele aprendeu a se cuidar. Tem que haver uma pré-disposição do dono do olhar. É quando existe certa angústia encrustrada no fundo mais fundo daqueles olhos que se deixam penetrar. É mágico, inquetante e muitas vezes perturbador.
Sabendo disso, fica mais fácil entender o que vem a seguir.
Vamos conhecer uma dessas experiências empáticas muito particulares que só acontecem quando se olha nos olhos do Zé.
Parte 1
Aquela menina parecia um bichinho assustado. Aparecia no chão de fábrica lá uma vez ou outra e mal era percebida. Trabalhava no setor fiscal da fábrica e um belo dia teve que ir até o almoxarifado para conferir os dados de uma encomenda que havia chegado mas que estava com alguma pendência. Chegando ao setor, pediu licença e foi entrando sem maiores cerimônias. Mas na hora que ela teve que pedir uma informação ao Zé, a mágica aconteceu. Meio sem querer os olhos dela miraram fixa e rapidamente o infinito dos olhos do Zé e aquele frio arrepiante foi descendo pela espinha do nosso almoxarife. Um filme novo foi gravado em sua memória e, principalmente, fundido na sua alma.
A partir daquele momento a menina passou a fazer parte da vida do nosso protagonista. Fera, como era chamada pelos colegas do escritório, passou a viver dentro da cabeça do Zé. Não é tão fácil entender esse fenômeno. Vou explicar melhor: Quando isso acontece, podemos dizer que ele começa a ter uma vida dupla. Vivendo a própria vida, com as mesmas sensações do mundo externo mais os seus sentimentos e pensamentos corriqueiros, porém, com uma presença nova. Uma sombra que está lá. No cantinho. À espreita. E aquela, a Fera, era de arrepiar. Por isso que o Zé evita olhar de frente. Encarar, olho no olho. O risco é grande. Não é sempre que acontece. É só com as almas inquietas. Aquelas que estão pedindo socorro.
Voltando à nossa narrativa, assim foi. Nas horas restantes daquele dia de trabalho, a Fera foi deixada lá no fundo do abismo onde o Zé conseguia exilar seus fantasmas. Enquanto manteve a mente ocupada, aquela presença incômoda não se revelou. No balançar do ônibus lotado, na fila da padaria com aquele odor agradável de pão quentinho do final de tarde, na pequena caminhada até em casa. Nada. Isso porque ele estava sempre dando corda no relógio dos pensamentos com alguma bobagem que lia nas placas de propaganda e, quando não tinha mais o que pensar, começou a contar os passos e concentrar-se nos números pensando se eram primos, pares, naturais ou parentes próximos, só para manter o balancim dos neurônios em atividade. Chegando em casa, naquele silêncio de um lar vazio, sem mais alma por perto, ligou a TV o mais rápido que pôde e concentrou-se nas notícias. Eram horríveis. Assassinatos, atropelamentos, filas de hospitais com doentes pelo chão. Mas era melhor ouvir isso do que permitir que o silêncio deixasse o caminho livre para a Fera.
Naquela manhã, quando os olhos deles se cruzaram, Zé teve a certeza de que aquela mágica incômoda, aquilo que ele considerava uma maldição extenuante e sem antídoto, tinha acontecido. Ele sentiu na hora e sabia que não estaria mais sozinho, por um bom tempo. Ou para sempre.
Mas uma coisa o Zé nunca tinha entendido e, agora, talvez tivesse oportunidade de esclarecer. Por que é que chamavam aquela menina de Fera. Ela parecia sempre tão quieta, quase muda. Submissa. Nem prestativa, nem indiferente. Bem mais ou menos… Isso começou a deixá-lo intrigado mas logo se entreteve com um documentário sobre as formigas gigantes do Himalaia e deixou o tempo passar em direção à noite que o aguardava ansiosa.
Quando resolveu ir dormir, sabia que os demônios dariam o ar da graça. Tentou acalmar-se com o esvaziamento da mente, uma técnica que sempre o ajuda a relaxar, e que e permitiu naquela noite lentamente a abertura da porta que leva ao porão dos sentimentos. Deixou a Fera sair. Começou a sentir uma angústia inexplicável com sabores amargos de rejeição. Pensamentos de vingança e revolta tomaram conta da sua mente. Então deixou-se envolver pela Fera e começou a ler suas memórias. Aí a noite ficou pequena.
Parte 2
Os fichários estavam lá, com todas as pastas dentro, mas o Zé não podia escolher. O que vem, vem. Ele não tem poder de escolha.
Naquele silêncio da noite, no escuro de seu quarto, Zé começou a sentir um forte cheiro de fumaça, como se algo estivesse pegando fogo. Ele sabia que a sensação não estava sendo captada pelo seu olfato, mas sim pelo olfato da Fera. Era um dos truques dessa empatia real de memórias. Além do cheiro de queimado, sentiu o calor aumentando e ouviu gritos de pessoas e um diálogo desesperado justamente onde estava.
-Cuidado! Não corre ladeira acima, porque pra lá está pior.
-Temos que sair daqui Batista. Vai pegar fogo em tudo.
– Disse uma mulher que parecia muito preocupada.
-Mas e as nossas coisas? Roupas, móveis e tudo? Maria.
-Não tem problema Batista. Temos que salvar a nossa vida e a da nossa filha. Ela só tem quatro anos. Está assustada e essa fumaça toda daqui a pouco chega aqui. A gente começa de novo do nada. Vamos procurar ajuda em algum lugar.
Então o barulho começou a aumentar e eram sirenes, gente gritando, e um ruído estranho que lembrava estalos de madeira ao fogo.
As sensações estavam vindo e o Zé, na pele da Fera, àquele momento uma menina de quatro anos, precisava navegar mais um pouco para ver onde isso ia dar.
-Pega ela no colo agora e vamos. Eu consegui colocar umas roupas nessas sacolas aqui. Vamos agora Batista.
-Vamos. Vem aqui meu amor. Vem no colo do papai que nós vamos dar uma volta.
Saíram rápido pela porta e o que o Zé conseguiu ver foi somente o que estava sendo deixado para trás, porque ele via pelos olhos da menina, que estava no colo do pai olhado sobre os seus ombros. Era uma viela muito estreita, parecia uma favela. Olhando mais de longe, pôde perceber que estava tudo pegando fogo. Vários barracos se desfazendo em brasas. Caminharam assim naquele solavanco por um bom tempo.Mais adiante ele conseguiu ver bombeiros trabalhando em vão. Tentando jogar um fio de água sobre aquele inferno.
-Prá onde nós vamos, Maria?
-Vamos parar um pouco aqui embaixo. Estou cansada. Essas sacolas estão pesadas.
-Tá bom. Senta aí nesse latão e fica com a Ritinha no colo. Não larga ela por nada. Eu vou dar uma olhada como estão as coisas mais lá em baixo. Já volto. Deu um beijo na esposa e abraçou Ritinha com um aperto aconchegante, daqueles muito parecidos com abraços de amigos, com afeto. Aqueles que querem dizer que no final, tudo vai ficar bem. E se foi.
O que o Zé conseguia sentir, era uma confusão de sensações captadas por uma criança de 4 anos. Mas ao mesmo tempo podia analisar a situação, com sua própria razão, buscando conexões que o levassem a entender o que estava acontecendo.
Quando fazia mais ou menos meia hora que estavam esperando, Ritinha e a mãe foram abordadas por uma policial que disse que elas tinham que sair dali. Ir com ela para algum lugar onde as pessoas estavam sendo recebidas.
-Mas e o Batista, meu marido? Ele já deve estar voltando.
-Minha senhora, o fogo está chegando aqui e há risco de intoxicação da sua filha por causa da fumaça. Temos que tirar todos daqui agora mesmo. Com certeza o seu marido também será encaminhado para a central de triagem.
E sem mais cerimônias, foram descendo a ladeira em direção à parte baixa da favela. Zé só conseguia sentir o balanço do colo da mãe de Ritinha e uma respiração já ofegante da menina.
Na central de triagem, um mundo de gente estava na mesma situação. Crianças chorando, pessoas com ferimentos, muitos lamentos de todos os lados.
Gente pobre que perdeu o pouco que tinha e com a esperança bem diminuída.
Nesse momento, Zé percebeu que a Ritinha tinha sido acomodada em uma cama ou maca, pois só via o teto e logo depois tudo ficou escuro. A conexão parou.
Provavelmente a menina dormiu e aquela memória acabou.
Aproveitando a boa sensação, Zé, exausto também entregou-se aos braços do merecido sono.
Parte 3
No dia seguinte, apesar de bem disposto para o trabalho, como sempre, Zé resolveu, em um tempinho que teve disponível após o almoço, pesquisar notícias na internet sobre incêndios em favelas. Como imaginava que a menina agora devia ter uns 20 anos de idade, fez buscas de ocorrências entre 15 e 17 anos atrás.
Após algumas informações sem nexo, chegou a uma foto onde via exatamente o que havia resgatado da memória da Fera na noite anterior. Os barracos pegando fogo, no que parecia ser uma foto tirada de um ponto muito próximo onde a menina e a mãe tinham sentado para descansar após a descida do morro.
Rastreando o site onde estava postada a foto, descobriu que se tratava de um incêndio ocorrido em 17 de junho de 1996, onde morreram quatro pessoas, entre elas um bebê. Foi na Favela de Heliópolis na cidade de São Paulo.
Como era uma notícia de 18 anos atrás, não conseguiu muita coisa. Mas já era o suficiente para começar. O nome da Fera era Ritinha e agora deveria ter 23 anos de idade aproximadamente, calculou ele. A partir daquele momento, Zé decidiu que não ia mais pensar nela como Fera, mas sim como Ritinha, até porque não tinha motivos para relacionar o apelido coerentemente à pessoa.
Como na empresa não usavam crachás, ele não tinha ideia, até então, de qual era o nome dela.
Nesse dia não se cruzaram. Zé ficou lá entregando peças o dia inteiro, e anotando códigos, e repondo outras tantas nas prateleiras, e assim passou o dia na sua rotina modesta.
No retorno para casa, a mesma coisa de sempre. Simples assim. Ônibus, padaria, caminhada, casa. Mas diferente do dia anterior, não estava apreensivo com o novo serzinho que habitava o abismo do oculto do lado de dentro da sua nuca. Ele parecia que já a conhecia e, tendo vivido aquela memória da infância da menina, desenvolveu até certa afeição por ela.
Então não se deteve. Como era quarta-feira, assistiu o futebol que passava na TV, sem muita expectativa, até porque não torcia por time nenhum, e depois do banho foi dormir. Logo pegou no sono e se deixou levar para o conforto dos braços de Morfeu, sem muitas cerimônias. Até porque essa rotina de operário não é fácil. Dá uma canseira…No meio da noite, sem saber bem que horas eram e nem o que estava acontecendo, o Zé percebeu que havia mais alguém ali. Concentrou-se um pouco na situação e pôde ver que não estava em seu quarto, em sua cama. Estava em outro lugar. Era o sofá de uma sala pequena. E essas sensações já não eram as dele. Não estava sonhando. Estava vivendo outra memória de alguém.
Foi então que ouviu uma voz fraca e doce, de mulher adulta, dizendo:-Levanta daí Rita. Vai dormir na tua cama. Já é madrugada.Olhando para o rosto da mulher, reconheceu a mãe daquela menina, a Ritinha da noite anterior. Pelo visto, haviam se passado vários anos. Pois aquela mulher, Maria, parecia que tinha avançado bastante no tempo. Era um rosto sofrido.
– Vamos filha. Amanhã cedo você tem aula.
-Tá bom mãe. Eu vou pra cama, mas e se…
-Mas nada Rita. O teu pai não vai voltar. Não adianta ficar todas as noites no sofá. Ele não vai voltar. Faz dez anos que ele sumiu naquele incêndio, filha. E você insiste em ficar esperando…
-Mãe. Eu não me lembro mais do rosto dele…
Aí o Zé sentiu que a menina, agora com 14 anos, estava chorando, e teve o consolo da mãe. Sentiu uma sensação de aconchego. Era um abraço de mãe, que há muito ele próprio não sentia, pois sua mãe havia morrido há muitos anos, quando ele ainda era uma criança e ficou aos cuidados parciais do pai e de uma tia rabugenta. Mas deixa pra lá. O seu “eu” agora era só um hospedeiro. Aquela memória alheia ainda estava ativa e precisava ser explorada.
Estava entrando em um quarto pequeno e percebeu quando aquela adolescente, cheia de tristeza deitou-se na cama e continuou chorando até o amanhecer que aconteceu logo.
A mesma tristeza abateu o Zé, que foi tocado pela visão que teve quando Rita pegou um porta-retratos de cabeceira onde estava uma foto quase pela metade, com mais de um terço queimada, onde pôde ver, sob a luz fraca que vinha de um poste da rua e atravessava a janela do quarto dela, a imagem de uma menina sentada no colo da mãe e ao redor delas, dois braços de homem, entrelaçados . Era só isso que tinha para lembrar do pai. Parecia que aquela foto havia sido resgatada de um incêndio e justamente a parte onde estava o rosto do pai dela foi queimada.
E agora o que restou para ter saudade era apenas a lembrança de um abraço.O despertador tocou e até o Zé se assustou, pois tinha se envolvido naquela sensação de conforto que a foto havia proporcionado, aos dois. Após o susto, viu que já estava entrando em uma sala de aula. Ocorria isso frequentemente: os saltos de memória. Uma sequência de acontecimentos poderia estar em um mesmo arquivo, sem interrupções bruscas. Mas naquele momento, a partir da entrada de Rita na sala de aula, o nosso Zé, começou a descobrir o porquê do apelido que havia sido imputado àquela menina que, até então, lhe parecia tão meiga.
Como na porta estava escrito “6ª Série B”, e também, porque deu a sensação de que as outras crianças da classe eram menores do que ela, Zé entendeu que Rita estava atrasada na escola. Na sexta série, com quatorze anos? Alguma coisa estava errada.
Viu que a menina abriu o caderno sem muita vontade e o sentimento naquele momento era de falta de interesse, não só na escola, mas em tudo.Era uma sensação que ele nunca havia sentido. Uma angústia desesperadora, mas sem explicação para ele. Pois podia sentir o que o sua hóspede inesperada sentia. Mas não conseguia ler os pensamentos dela.
A professora entrou e foi pedindo silêncio.Durante a chamada Zé pensou, é a minha oportunidade de saber o nome correto dela. E foi chamada Rita Moreira Alves. Mais uma informação para a montagem do quebra-cabeças da vida daquele ser enigmático.
A resposta da menina foi “Presente”. Um “presente” com jeito de “ausente” ou de “não tô nem aí”, sem entusiasmo nenhum.A professora começou:
-Vamos continuar falando sobre os números naturais… blá, blá, blá…Rita ficou escrevendo no caderno as frases: “número natural é MERDA”… “essa professora é uma vaca”… “essas crianças são um bando de idiotas”…
Foi então que a professora veio em sua direção e, mais que rapidamente ela rasgou a folha do caderno e começou a amassá-la lentamente. A bola de papel ficou no canto da carteira e, em seguida, caiu no chão em um movimento que ela fez com o livro.
Como tudo o que já está ruim pode ficar ainda pior, a professora, na volta, juntou o que parecia ser lixo, aquele pedaço de papel amassado e, como conseguiu ler a palavra “MERDA” que estava bem destacada, curiosa, desdobrou a bolota e leu o resto.
Não deu outra. A Rita foi parar na frente da Diretora da escola que, juntamente com outra mulher com cara de braba, deram uma ensaboada na adolescente que deixou o Zé de cabelos em pé.
-Rita,
– disse a Diretora com voz firme
– não vamos chamar a sua mãe porque sabemos que ela tem dois empregos e não tem tempo nem de vir até à escola.
E continuou.
-Você já reprovou duas vezes a sexta série. Não sabemos mais o que fazer menina. Esse tipo de rebeldia não dá em nada. Estudar é importante para a vida. Você precisa ajudar a sua mãe. Ela é uma pessoa boa, trabalhadora e faz tudo por você.
Zé, coletando instantaneamente as sensações da menina, sentia a raiva que ela estava sentido e começou a tremer, como ela.
Foi aí, que a outra mulher com cara de braba disse:
-Venha comigo que nós vamos ter uma conversinha, lá na minha sala.
-Ofélia
– disse a Diretora
– quando terminar devolva a Rita na sala e venha aqui para conversarmos.
-Sim Senhora, disse a mulher.
Rita seguiu-a por um corredor interminável mal iluminado até uma sala pequena com cheiro de mofo, que tinha uma mesa redonda com duas cadeiras e dois sofás no canto.
Zé pensou, isso deve ser coisa de psicóloga. Mas essa mulher, com essa cara de braba, deve aplicar a psicologia do “Boi da cara preta”…
E começou:
-Vamos lá, menina.
-Dona Ofélia – disse Rita
– a Senhora sabe que eu não tinha a intenção de ofender ninguém. É que eu não gosto dessa escola, nem desses pirralhos e nem de ver números naturais pela milésima vez.
-Muito bem. Mas enquanto você não aprender, vai ter que ver de novo.
-Bosta! – murmurou Rita baixinho.
-O que você disse?
-Nada não D. Ofélia. Eu só estou triste.Mas a sensação de raiva ainda estava lá e a frustração era um turbilhão de emoções permeadas pelo cansaço de uma noite de pouco pregar os olhos.
Foi levada de volta à sala de aula onde, sentando, debruçou-se sobre a carteira e, após alguns minutos adormeceu e a janela do abismo se fechou.
A sensação para o Zé foi eletrizante. Ele lembrava pouco da sua adolescência, até porque já iam mais de 30 anos, mas não lembrava de ter se sentido assim algum dia.
Estar na pele dos outros não é fácil. Mas é desafiador.
Colocar-se no lugar do outro é uma tarefa que poucos temos a habilidade necessária para desenvolver.
Não era o caso do Zé, porque isso já era costume, afinal, ele tinha esse hábito involuntário há alguns anos. Mas sobre isso, falamos depois.
Parte 4
Ainda impressionado com o que vivenciara, Zé demorou um pouco para pegar no sono, mas às 6h o rádio relógio o despertou, como sempre, com uma música, como ele gostava, de uma emissora que a essa hora não tinha nem propaganda nem notícias.
Estava tocando “…estou sentado à beira de um caminho que não tem mais fim. Preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo…”. Uma música do Erasmo Carlos que lhe fazia pensar, por coincidência.
Aí enquanto se preparava para sair, ficou pensando na Rita e na sensação de desgosto pela vida que teve quando folheou aquelas memórias na noite anterior.
O que será que tinha ocorrido com ao pai dela? Teria morrido no incêndio? Teria fugido desesperado pelo medo do que iria enfrentar, tendo que reconstruir a vida, pois havia perdido o pouco que tinha naquele incêndio? Ou será que ele já estava planejando deixar a família e encontrou a desculpa certa naquele inferno?
Qualquer coisa que ele pensasse agora seriam meras especulações. Ele tinha que deixar o fluxo das memórias inquietas da sua visitante temporária concluir o seu ciclo natural.
Então, ao sair, ficou pensando se não era hora de acabar com isso. Estava sempre vivendo e se alimentando das memórias e, de certa forma, da vida dos outros. Estava com quase cinquenta anos e não tinha vida própria. Aquela música do Erasmo ficou na cabeça dele repetindo o verso “…preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo, que eu existo, que eu existo…”.
Sentiu-se um pouco angustiado enquanto caminhava em direção ao ponto de ônibus. Não tinha família, Mulher, filhos. Quase não tinha amigos e tinha poucas lembranças. Isso é, poucas lembranças de sua própria vida. Muitas vividas dos outros. E esses outros eram tantos que ele já não conseguia mais contar. Os ciclos de manifestação das lembranças eram relativamente curtos e elas não se misturavam. Parecia que havia um acordo tácito entre os titulares dos arquivos, que um ciclo novo só começava quando o último a ocupar um lugar à luz na cabeça do Zé tivesse terminado o seu.
Parecia que aqueles seres ocultos é que formavam a vida dele. Que eram a família dele.
Mas o que o angustiava é que nenhum daqueles seres quase imaginários estaria presente em sua velhice para colocá-lo ao sol. Para retirá-lo do sol. Para ouvir suas lembranças.
Precisava mesmo acabar logo com isso.
Porém, enquanto não tomava nenhuma decisão, isso é, não preenchia esse espaço da sua vida com pessoas de carne e osso, ia vivendo das lembranças dos outros.
E por falar em outros, agora que sabia que a Rita tinha um geniozinho difícil na adolescência, começou a pensar se era por isso que a chamavam de Fera lá na empresa. Porém ele não podia abordá-la. Se passasse a fazer parte da vida dela, isso é, a ser uma das memórias dela, a mágica terminava. Acabaria tudo. Ele voltaria a ser um simples almoxarife e não teria mais aquela visão privilegiada da vida de Ritinha.
Essa era uma das maneiras de desfazer uma conexão com os arquivos memoriais de alguém: fazendo-se conhecer…. Mas não queria isso agora. Ainda tinha mais por desvendar.
Chegando ao trabalho, entrou direto na área de materiais recebidos, pois tinha que organizar nas prateleiras tudo o que havia chegado no dia anterior e seguiu sua rotina.
Mas uma inesperada visitante apareceu, dessa vez em carne e osso, no seu feudo laboral. Adivinha… Era ela mesma. A Rita, Ritinha ou, para os mais íntimos, a Fera.
Ela foi entrando sem pedir licença dessa vez, pois a porta estava aberta e foi logo pegando umas notas fiscais que estavam sobre o balcão e começou a anotar algo em uma prancheta que tinha nas mãos.
O Zé que estava atrás de uma prateleira, escondido entre as peças, ficou olhando para ela sem ser percebido. Como é que aquela adolescente rebelde tinha se transformado nessa moça, não muito simpática e, pelo que ele sabia, uma boa profissional?
Bom, ainda era cedo para tirar conclusões. Quem sabe, por detrás daquela fachada de Fera, tivesse uma pessoa boa, justa e batalhadora. Continuou escondido até que ela foi embora, pois não quis quebrar o encanto.
No final do dia de trabalho, exausto pois teve que organizar tudo para o inventário de fim de mês que teria que ser realizado na próxima segunda-feira, o nosso protagonista foi fechando tudo e dirigindo-se à saída para bater o ponto.
Próximo ao portão, estava o seu Aladir, aquele do chão de fábrica, que foi logo falando:
-Ô Zééé… A turma tá se organizando aqui para dar uma passada no bar da dona Dirce pra tomar umas geladas e jogá conversa fora… Vamo junto.
-Seu Aladir – Zé logo respondeu
– Eu tenho que ir pra casa. Se eu perco a condução tenho que esperar mais uma hora.
-Zé. Eu, o Reco-Reco e o Bolão, temo família em casa esperando. Tu não tem ninguém. Hoje é sexta-feira rapaz. Vamo lá. Não vai te faze mau nenhum…
-Tá bom Seu Aladir. Eu vou acompanhar vocês hoje. Vamos lá.
Caminharam uns duzentos metros e já chegaram no local. Já estava repleto de outros trabalhadores da fábrica.O assunto não era outro. Trabalho, máquinas, os chefes e, à medida que as cervejas iam sendo abertas, começaram a falar de futebol e logo, é claro, de mulheres…
-O Zé. – disse o Bolão
– O que que aquela azeda da Fera tava fazendo lá na tua área hoje à tarde? Aquilo é muié ruim… É o cão chupando manga.
-Nada não Bolão. Ela só foi lá pra ver umas notas fiscais. Mas me diz. Porque é que ela tem esse apelido?
-Hômi. Tu não sabe? O que contam por aí é que ela foi o motivo da morte do Atanásio.
-O que? Como pode aquela menina ser responsável pela morte de alguém? O Seu Atanásio morreu de acidente. Caiu do telhado da casa dele quando trocava umas telhas quebradas. Foi há uns três meses atrás. Eu fui no velório e no enterro. E vocês também foram.
-Que nada Zé. – se intrometeu o Seu Aladir – Você não sabe de nada. Eles tinham um caso. Ele era chefe dela não lembra? Dizem que ela deixou ele loquinho. E quando ele disse que não queria se separar da mulhé ela largou dele. E daí o coitado resolveu dá cabo da própria vida.
Zé ficou em silêncio. Não falou mais nada. Não perguntou nada. Aproveitou que mudaram de assunto e ficou quieto pensando: que bom que ele vivia longe daquele mundo onde todos sabiam da vida de todo mundo. No chão de fábrica tem um meio de comunicação que é chamado de “Rádio Peão” e parece que é muito eficiente.
Ele não queria saber dessa história toda. A realidade que acreditava não vinha da boca das pessoas. Vinha da memória dos outros. E os outros eram dele. Só dele.
O Bolão era um cara engraçado. Zé o conhecia por dentro. Era um ser inocente e acreditava em tudo. Não tinha maldade. Uma vez, as suas memórias habitaram, por pouco tempo o abismo dos arquivos secretos na cabeça do Zé. Por isso ele não se irritou com aquela história toda.
O Seu Aladir era um homem bom. Meio turrão às vezes, mas um homem justo. Não estaria inventando aquela novela mexicana. Se falaram aquilo é porque algo existia. E se existia ele ia descobrir a verdade. A verdade verdadeira. Aquela que pode se esconder até do seu próprio portador. Ele ia descobrir. Era só deixar a porta aberta.
Despediu-se dos amigos, desejou bom final de semana a todos e foi em direção a mais um final de semana sem muito o que fazer…
Parte 5
Como fazia todos os finais de semana, no sábado pela manhã saiu para caminhar. Não era um caminhar por esporte, mas um caminhar meio sem motivo mesmo. Sempre escolhia um parque ou algum lugar com pouca aglomeração de gente. Não que não gostasse de ver gente. Mas é que queria ficar longe das algazarras. Gostava do ruído natural das coisas. Fossem elas da natureza ou não. Gostava de ver uma construção em andamento. Ouvir o barulho das máquinas e do movimento ao redor de uma grande obra. O que não gostava era aglomeração de pessoas no comércio, por exemplo, com aquele barulho todo de vendedores gritando nos microfones em frente às lojas. Tinha horror disso. Como não era nada consumista, não tinha necessidade de ir a esses centros de comércio como ruas movimentadas cheias de lojas nos dois lados, ou mesmo shopping-centers. Quando ia ao mercado, preferia ir muito cedo ou tarde da noite para não pegar aquele movimento todo.Dessa vez, tinha vontade de ver as obras do novo estádio do Corinthians. Então pegou um ônibus que o deixou próximo a uma estação do metrô. Escolheu o trajeto nos painéis antes das catracas, comprou o bilhete e foi. Depois de 40 minutos estava chegando próximo ao novo estádio. Caminhou uns dois quilômetros e chegou. Não era torcedor do Corinthians, como não era de time nenhum. Mas como gostava de ver grandes obras, ficou admirado com aquilo tudo. Faltava pouco mais de três meses para a inauguração, mas parecia que já estava quase pronto. Caminhou ao redor do estádio por quase uma hora. Ficou maravilhado ao ver como o homem é capaz de produzir peças maravilhosas.Quando resolveu voltar para casa, já era quase meio dia e estava com fome. Aí resolveu comer alguma coisa em um lugar bem próximo da estação onde iria pegar o metrô novamente. Sentou em uma mesa em frente a um bar e pediu seu lanche. Era um lugar simples, onde morava gente muito simples e dali onde estava podia ver um morro onde se instalara uma pequena favela. Ficou pensando que era de um lugar desses que teria vindo a Ritinha. De um lugar desses que o pai dela teria desaparecido. O que teria acontecido com aquele homem? Será que aquela história toda da Rita com o seu Atanásio seria verdade? Ela devia ser pelo menos uns 25 anos mais jovem que ele.
Enquanto terminava de comer, passou a observar algumas crianças que estavam brincando na rua e lembrou do seu tempo de infância, quando jogava bola com os seus amigos. Mas sempre tinha que voltar antes para casa, porque aquela tia que cuidava dele parecia que preferia ter em casa um boneco de cera do que uma criança. Então ele não podia se sujar, nem se machucar, nem se divertir. Era só ir para a escola, fazer a lição, ler e ir dormir. Somente nos finais de semana ele estava autorizado a ver televisão. Seu pai, que nunca estava em casa, pois era caminhoneiro, nos poucos momentos em que tinham contato, não se importava muito com ele.Talvez por isso é que tenha se criado esse ser solitário, que tinha gosto pela solidão.Refazendo o caminho de casa, ficou pensando em seu trabalho, como era gratificante. Tinha sorte de trabalhar naquela empresa há quase vinte anos. Após sua tia morrer e seu pai ir morar em uma casa para idosos, ele ficou com a casa e com tudo o que tinha dentro. Já pensou muitas vezes em vendê-la e comprar um apartamento pequeno, mas gostava tanto da tranquilidade daquele lugar onde morava que achava que deixar tudo como está era a melhor opção.
Passou no açougue para comprar uns bifes e foi para casa.Ligou a TV e estavam emitindo um documentário sobre a vida das tartarugas marinhas. Deitou-se no sofá para assistir e, como um documentário é sempre um bom sonífero, com aquela voz retilínea do locutor em off, acabou dormindo.Durante seu sono, mais uma vez a janela que dá para o fundo do abismo, aquela por onde saem as lembranças dos outros, se abriu e deixou ela passar.
Veio de novo a sensação de angústia e de desamparo. Sentiu cheiro de velas queimando e de flores doces, essas que só se encontram em velórios. Não deu outra. Estava em um velório e viu alguém vindo em sua direção. Era uma mulher bem velha que lhe abraçou e disse.
-Rita, agora é só você. Sua mãe lhe ensinou muita coisa boa. Se precisar da minha ajuda, sabe que pode contar.
Sentiu os olhos cheios de lágrimas. Mas eram as lágrimas da Rita que escorriam pela sua face. Olhou para o caixão e pôde reconhecer aquele rosto sofrido que vira há alguns dias e de quem tinha recebido um abraço carinhoso.
Realmente. A mãe da Rita havia falecido.No velório, havia pelo menos umas vinte pessoas. Todos estranhos para ele, com exceção de um. Reconheceu o Atanásio entre os presentes. Viu que ele estava com os olhos vermelhos de tanto chorar. Zé não entendeu nada. Porque o Atanásio estava lá e porque estava tão abalado?
Logo na sequência vieram fechar o caixão e o levaram para o cemitério em frente. Debaixo de um sol escaldante baixaram o caixão ao túmulo e a sensação que sentia nesse momento era devastadora. Parecia que o mundo tinha acabado. Ele nunca se sentira assim ou pelo menos não lembrava. Mas imaginou que se tivesse vivido um pouco mais com a sua mãe, quando ela morreu, teria vivido uma dor parecida.
Quando todos estavam indo embora, Atanásio aproximou-se da Rita e lhe disse:
-Não se preocupe querida. Eu vou cuidar de tudo. Não vou deixar você desamparada. Paguei todas as despesas do velório e você pode contar com a minha ajuda para o que precisar.
-Mas Seu Atanásio – disse Rita – Eu não sei o que fazer. Como é que eu vou pagar as despesas que tenho. Era tudo ela que bancava. A minha faculdade é pública, mas eu não tenho como me sustentar.
-Não pense nisso agora. Vamos dar um jeito. Eu amava muito a sua mãe e sou muito grato por esses dezesseis anos de amor que ela me deu, sem pedir nada em troca. Desde quando ela começou a piorar do câncer e quando eu percebi que não tinha mais volta, eu comecei a planejar tudo. Tenho ótimas ideias. Tudo vai dar certo.
Seguiram de carro e pararam em um restaurante que parecia ser bom, daqueles que ele, o Zé, nunca havia frequentado. Entraram, acomodaram-se em uma mesa próxima de uma janela, fizeram o pedido e Rita disse:
-A minha mãe me fez desistir de esperar pelo meu pai. Ninguém sabe onde ele está. Se está vivo ou morto. Mas eu não me sinto sozinha ainda. Acho que a qualquer hora ele vai voltar. Não é a mesma coisa com a mamãe. Eu vi o sofrimento dela, estava lá quando ela morreu. Vi o enterro. Não tem volta.
-Rita – disse o Atanásio – Não tenha esperanças. Se o seu pai fosse voltar, ele já teria aparecido. De agora em diante, eu vou cuidar de você. Me considere como o seu pai. Quando eu conheci a sua mãe, você tinha seis aninhos. Nunca fomos muito próximos. Mas se você quiser, podemos ser. Conte comigo.
E continuou: -Você já está quase se formando em contabilidade não é? Então eu já falei com o meu Diretor que eu preciso de uma pessoa a mais na área do recebimento da empresa e ele concordou. Você pode ser contratada como estagiária e, quando se formar, se tudo correr bem, eu posso efetivá-la.
-É mesmo? – disse Rita – Mas quando eu vou estudar?
-Querida, falta só um ano para você se formar. Transfere a tua faculdade para de noite e tudo vai dar certo. Eu sempre vou dar um jeito de te deixar estudar no horário de trabalho quando for preciso.
-Tá bom. Vou aceitar.-Ok. Mas tem uma condição: Ninguém lá na empresa pode saber qual é o nosso relacionamento.
-Que eu sou filha da sua amante que morreu?
-Não é bem assim, mas é isso mesmo. Eu estava pronto para deixar a minha família para ir morar com vocês. Mas aí ela descobriu o câncer e não me deixou fazer isso. Eu insisti, mas ela não deixou.
-Sei – disse Rita, meio incrédula.-Acredite. É a mais pura verdade. Mas ninguém pode saber do nosso relacionamento. Não quero estragar as coisas na empresa e nem na minha casa. Eu cuidarei de tudo. Amanhã mesmo vamos cuidar de tudo. Você vai a um advogado amigo meu que vai te ajudar com os documentos para o inventário e tudo mais. Quando eu ajudei a sua mãe a reformar aquela casa que ela havia herdado da sua avó, não imaginava que você iria morar sozinha nela tão cedo.
-Muito obrigada Seu Atanásio.-E o seu namorado? Porque ele não veio ao enterro? Ele devia estar com você nessas horas.
-Não tenho mais namorado. Eu descobri que ele usa drogas e terminei com ele. Eu não gostava mesmo dele. Era muito crianção.
-Tá certo menina. A gente tem que se dar valor. Nunca perder tempo com quem não nos merece.
-É isso mesmo. E agora eu estou pensando, como eu queria ter passado mais tempo com a minha mãe, e com o meu pai.
-Ritinha. O que passou, passou. O tempo é implacável. Não tem volta. A gente tem que viver bem o hoje. Deixar o ontem para o passado. Eu também vou sentir muitas saudades dela. Vai ser difícil, mas vamos superar.
-É, para o Senhor é fácil. Tem uma mulher e filhos lhe esperando. Tem uma vida. Mas eu estou sozinha. Não tenho mais ninguém.
-Você não tem amigos? Não vi ninguém com você lá no velório. Cadê seus amigos?
-Eu não tenho. Em três anos de faculdade só fiz uma amiga que foi embora ano passado para outro Estado. As pessoas não gostam de mim. Me acham esquisita.
-Não é verdade Ritinha. Você é bonita. Não é muito amigável, é verdade. Mas é autêntica. Diz o que pensa.
-Pois é, mas isso tem me deixado distante de todo mundo. E sabe do que mais? Eu estou muito bem assim, sozinha.
-Pensa bem, menina. Até agora você tinha a sua mãe. Ficar sozinha não é uma coisa fácil, principalmente para alguém da sua idade.
-Deixa que eu me viro Seu Atanásio.
-Tá bom. Eu vou te deixar em casa agora e amanhã cedinho eu passo para te pegar e te levar para a empresa onde trabalho para fazer a entrevista no RH.O Atanásio pediu a conta e foram embora. O Zé reconheceu a casa. Era a mesma da última memória, quando Rita tinha 14 anos. Pouca coisa tinha mudado.
Rita chegou e se atirou na cama e do jeito que estava, dormiu.
A conexão terminou e Zé acordou.Já era noite e a fome estava pegando.
Enquanto preparava aqueles bifes para a janta, ficou pensando naquele capítulo novo que havia desvendado. Como era bom acreditar nos seus próprios sentimentos. Ele sabia que aquela menina não era tão má a ponto de levar um homem ao suicídio. Ela era, na verdade, protegida dele. A filha da amante do Atanásio, que todos desconheciam. Ele devia ter morrido mesmo por causa de um descuido. Foi acidente. O resto era tudo invenção das pessoas.Aí o Zé ficou pensando em como era bom viver só das memórias dos outros. Sem precisar se relacionar de verdade com toda essa gente que fica inventando coisas. Só ele sabia a verdade. Agora isso era um segredo dele e da Rita, a Fera que ainda habitava o seu abismo secreto.
Parte 6
À noite, como era sábado, decidiu assistir a um filme que passava na TV à cabo. Tinha poucos prazeres. Mas o que mais lhe dava satisfação era ver um bom filme.
Ficou zapeando até que chegou em um que estava por começar. O nome era “Perfume, a história de um assassino”.
O enredo se passava na França do início do Séc XVIII e ele não esperava que aquela estória iria prendê-lo a tal ponto de identificar-se com o protagonista. Jean-Baptiste Grenouille, um louco assassino sem eira nem beira que havia nascido em uma barraca de peixe e viveu uma vida desgraçada até o fim. Mas que tinha uma coisa em comum com ele. Um dom especial, fora do comum: conseguia identificar separadamente os vários aromas da natureza ou de uma fragrância produzida pelo homem. Grenouille tinha um olfato quase que mágico. E o Zé, tinha um olhar absolutamente único. Enquanto o francês miserável captava os aromas, o brasileiro suburbano captava as memórias. Ambos eram capazes de capturar a essência das pessoas, mas com uma diferença nada sutil: o Zé não precisava matar ninguém. Isso lhe dava uma vantagem, pois podia passar imperceptível, anos a fio, com a sua virtude (ou desvirturde) natural sem ser notado e sem precisar ser perseguido por isso. É que, no filme, Jean-Baptiste assassinava lindas jovens e aplicava uma técnica chamada “enflourage” para extrair a essência delas, como se fazia com as flores, na época, para se extrair os aromas.
Depois daquele dia intenso, foi dormir exausto com as suas memórias, as da Rita e as do Grenouille.Dormiu sem tropeços e sem sonhos.
Acordou cedo no domingo pois era dia de visitar seu pai na casa de repouso. Falando sério, era uma casa daquelas cujo nome feio é “asilo” que, pela módica quantia que corresponde a uma parca aposentadoria de caminhoneiro, cuida, limpa, alimenta e diverte um velho ainda saudável mas que de tanto viver na estrada gastando quase tudo em puteiros e botecos, não conseguiria se acostumar com uma vida diferente.
Não tinha mais bebidas, nem as putas. Mas ainda conseguia jogar baralho, dominó e contar piadas com outros velhos como ele e, de vez em quando, tirar uma casquinha de alguma enfermeira descuidada.
Zé não tinha prazer nenhum em visitar seu velho, domingo sim domingo não. Mas era seu pai, não tinha como negar. E se não era o melhor pai do mundo, era o único que tinha.Fazia aquilo como uma penitência. Era quase um pagamento pelas visitas que por vinte anos havia recebido do seu próprio pai quando era criança, adolescente ou jovem. O caminhoneiro vinha em casa no máximo duas vezes por mês. Chegava sábado e já assumia a boleia do caminhão no domingo mesmo. O tempo que ficava em casa era gasto com o sono ou a bebida. Não sobrava nada para ele.
Como já fazia 10 anos que o velho estava no asilo, fazendo justiça, bastavam mais 10 anos de visitas a cada duas semanas e estaria tudo pago.Bom. Foi assim o domingo. Entre a ida e a volta passou-se a parte clara do dia.
Esteve lá. Cumpriu com o seu papel de bom filho. Sorriu. Conversou com os velhinhos. Ouviu histórias, as mesmas que já ouvira várias vezes. Despediu-se e deixou-os com as suas velhas memórias, pois o nosso Zé tinha que cuidar das suas.
Chegando em casa, no início da noite de domingo ficou em silêncio. Sem TV, sem rádio e sem barulhos de máquinas.
Fez o que tinha que fazer. Lavou roupas, organizou as coisas e foi dormir.
Mais uma vez, no meio da noite foi acordado pelas lembranças. Dessa vez ficou confuso se era um sonho seu ou uma memória dos outros. Porque sentia um perfume muito, mas muito diferente de tudo o que o seu olfato jamais havia experimentado. Não sabia mais se estava dentro do filme de sábado ou dentro de uma memória de alguém. Podia ser só um sonho seu mesmo.
Ficou quieto um pouco, deliciando-se com aquele banquete olfativo até que começou a ter também sensações visuais. Eram muitos frascos e potes de cremes e perfumes diferentes. Estava no que parecia ser uma loja de perfumes ou cosméticos e conseguiu ver Maria, a mãe da Rita. Estava bem vestida, maquiada e com os cabelos arrumados.
-Querida. Prova mais esse – disse ela.
-Não mãe. Já deu. Esse monte de perfumes tá me deixando enjoada – respondeu Rita.
-Meu amor, você já vai fazer dezoito anos. Não tem vaidade nenhuma? Vai entrar na faculdade ano que vem. Pode conhecer alguém interessante. Tem que aprender a se cuidar.
-Mãe, você fala que eu vou entrar na faculdade como se fosse a melhor coisa do mundo. Você me obrigou a fazer aquele supletivo. Foi uma matação completa. Tirei todo o atraso em um ano. Não estudei nada e me deram um diploma. Agora você acha que eu estou pronta pra entrar em uma faculdade? Eu sou um desastre mãe. Não sirvo pra nada, você sabe.
-Querida, não é assim. A gente tenta e consegue.
-Você consegue porque tem o Atanásio que te ajuda.-Menina, não fala assim. Ele foi um anjo que caiu do céu na nossa vida.
-Mas não tá certo mãe. Ele tem outra mulher e filhos.
-Eu sei. Mas ele me dá amor e atenção.
-É. Amor e atenção toda quarta à noite e de vez em quando, nas vezes que consegue driblar a mulher com mentiras.
-Ritinha. Por que você é tão revoltada? Por que não consegue olhar o mundo com outros olhos? Veja a nossa condição. Nós duas fomos abandoadas depois de perder tudo.
-O pai não foi embora. E se foi, ele tinha algum motivo.
-Deixa isso pra lá. Não quero me irritar hoje. Eu vou jantar com o Atanásio e quero uma noite linda. Ele disse que vai pedir o divórcio e vem morar com a gente.
-Ah mãe. Você acredita em cada coisa né?
-Bom, que tal esse? Adorei o cheirinho de vergamota que tem esse perfume.
-A mãe. Isso é tudo cheiro enjoado…
-Oh menina revoltada, meu Deus. O quê que eu fiz pra merecer isso?Depois desse desabafo da mãe, que sem perder a calma e nem o humor dirigiu-se ao caixa, as duas caminharam algumas quadras, pegaram um ônibus e foram para a casa.
Zé ficou maravilhado com aquela memória, pois era um pouco mais cedo do que a última que tinha vivenciado e presenciava uma relação mais madura entre mãe e filha.
Abriram a porta, deixaram as compras e Rita foi para o seu quarto. Sentou-se na cama, pegou um pequeno caderno de capa dura, abriu e começou a escrever:
“Hoje o dia foi uma merda. Não sei que dia é hoje e nem tenho interesse em saber. Essa vida não me serve. Um dia eu acabo com isso. Só não quero ver minha mãe sofrer por causa de mim. Meu pai, onde você está? Volta pra casa. Esse cara não pode roubar o teu lugar nessa casa, pai. Volta. Vem me dar um abraço de novo.
”Nesse ponto, com a mesma sensação de perda que sentira antes, Zé viu gotas de lágrimas da Ritinha caindo no papel daquele caderno, que parecia ser um diário da garota. Foi quando ela abriu umas páginas anteriores e começou a ler algo.“
Dizem que as mulheres sempre tentam encontrar homens parecidos com o seus pais. Mas como eu vou fazer, se nunca vi uma foto do meu pai? Nem sei como ele era. Sei que era alto, moreno e com um sorriso grande. Tinha um bom coração. É o que a minha vó diz. Porque a mamãe nunca quer dizer nada. Mas isso é muito pouco. Assim fica difícil encontrar um homem pra mim. Além do mais, são todos uns bobos. Tem os que tem família e desaparecem. E os outros que querem ter mais de uma família pra ficar enganando as duas. A minha mãe é uma boba. Fica esperando esse Atanásio. Vai ficar esperando o resto da vida. Se bem que aquele Beto da padaria é interessante. A mãe não quer nem que eu olhe pra ele. Mas ele tem umas tatuagens no braço e no pescoço que eu fiquei curiosa de saber o que significam…. Amanhã vou lá sozinha e ver se ele me olha pelo menos um pouquinho.
”Na próxima página já estava escrito, com uma letra menos caprichada:“…eu sou uma burra mesmo. Ele olhou pra mim, disse que eram três reais, eu entreguei o dinheiro e não disse nada. Até que ele foi simpático. Sorriu pra mim e até disse meu nome. Mas eu fiquei congelada. Anta!!! Como é que eu consigo ser tão tansa? Ele deve estar cheio de gatinhas. Filho do dono da padaria. Como é que ele vai dar bola pra uma pobretona esquisita como eu?…
”Fechou o diário, pegou um livro de matemática e começou a folhear. Nesse instante a memória se fechou.Com essas poucas frases captadas do diário dela, Zé confirmou o tamanho da auto-estima da sua hóspede: abaixo de zero, em uma escala de zero a dez. E àquela altura ela já estava com quase dezoito anos de idade.
Não entendia muito de mulheres, mas aquilo estava soando estranho: uma moça de quase dezoito anos que se comportava como uma pré-adolescente?
Ficou um pouco ainda acordado pensando naquilo que acabava de vivenciar.Aquela menina era um enigma em pessoa. Era um bichinho estranho.Estava decidido. Amanhã, no trabalho, assim que tivesse um tempo, ele iria buscar um pouco mais de informações sobre ela. Com muito cuidado para não quebrar o encanto, mas saberia como fazer.
Como aquele miserável protagonista de “Perfume”, ele queria capturar a essência de Ritinha. Era do seu jeito. Juntando peças de um quebra-cabeças incompleto. Na verdade, quase sem peças para juntar.
Parte 7
O pessoal do escritório não precisava trabalhar de uniforme como o Zé. Na verdade usar uniforme era prático. Economizava com esse benefício, além do que deixava todo mundo mais ou menos do mesmo jeito, isso é, sem graça…
Mas como ia dizendo, a turma dos computadores e papelada vinha vestida como bem queria. Claro que abusos não eram permitidos. Porém, a saída da fábrica sempre era um espetáculo.
O pessoal, isso é, os marmanjos da turma do uniforme, sempre ficavam esperando o desfile das moças do escritório.Naquele mundo de gente, mais de 700 pessoas saindo na mesma hora, depois de uma jornada dura de trabalho, identificar alguma beldade não era uma tarefa fácil.
Vinham as do faturamento, as do fiscal, as do RH. Mas aquelas da área comercial eram um espetáculo à parte. Sabiam como seduzir o cliente, e os funcionários também. Ficavam babando quando elas passavam…
Mas isso era só diversão. Todos eram adultos e responsáveis, e babões…Bem. Mas naquele dia, o Zé estava seguro que ia descobrir algo mais sobre a sua presa, a Fera, isso é, a Rita.Na hora do almoço, conseguiu sentar ao lado de uma velha conhecida sua da área de recursos humanos, a D. Clara. Ela mesma havia feito a sua entrevista de admissão.
Era uma senhora que estava lá há muito tempo, uns 10 anos mais que o Zé, e já devia estar perto da aposentadoria. Diziam que ela já fazia parte da paisagem da empresa. Era uma mulher inteligente e divertida. Que sabia negociar muito bem.-Dona Clara, – foi puxando assunto o Zé, com cuidado para não deixar pistas – se eu saísse da empresa, quem você acha que poderia ficar no meu lugar?
-Vira essa boca pra lá, homem. Você vai se aposentar aqui, como eu. O mundo precisa de pão e pães precisam de máquinas.
– Respondeu D. Clara.-Não. É só uma hipótese. Não estou pensando em sair.-Você está doente? Tem que me dizer logo. Tem que se tratar.Aquela mulher já ficou preocupada…
-Nada disso. – Disse o Zé – Eu acho que a gente tem que deixar alguém preparado. Como aqui as férias são coletivas pra todo mundo e eu nunca falto, então não tem ninguém que sabe fazer o meu trabalho.
-Isso é verdade Zé. Mas hoje em dia, com computadores, códigos de barra e toda essa parafernalha, tocar um almoxarifado não deve ser tão difícil.
-Hei, está menosprezando o meu trabalho? Pensei que você fosse minha amiga. – Falou o Zé em tom de brincadeira…-Não Zé. Você sabe que eu te considero o nosso trabalhador exemplar a muitos anos. Você só não foi promovido várias vezes porque não quis. Se quiser agora, eu posso ajudar.-Não precisa não. Estou muito bem no meu labirinto do Minotauro. Aquele almoxarifado é tão grande que se algum desavisado for andando até lá nos fundos, vai ter que levar o fio de Ariadne para poder voltar.
-O fio de quê? Não tô entendendo nada. Eu nem sabia que você gostava de luta.-Que luta, Dona Clara.
-Esse Minotauro não é um lutador que aparece na TV? Um que tem cara de onça?
-Deixa pra lá Dona Clara. Estou deixando a senhora confusa. O que eu estou querendo dizer é que sempre é preciso deixar alguém preparado para uma substituição, em uma função estratégica como a minha.
-Tá certo. Eu entendo o que você quer dizer. Mas não tem orçamento para colocar ninguém mais lá não.
-OK. Sem problemas. – continuou o Zé – Mas digamos que precisássemos escolher alguém daqui, isso é, fazer uma seleção interna para a minha vaga. Quem a senhora indicaria?
-Ah Zé. Não faz pergunta difícil.
-Vamos lá, Dona Clara. Pensa um pouquinho.
-Tá bom. Eu ia procurar alguém que tenha contato com os itens comprados, por exemplo. Algum auxiliar da área de compras ou recebimento.
-Ah bom. É verdade. E tem uma moça no recebimento que parece bem esperta.
-Ah é? Quem? – Perguntou D. Clara.
-A Rita.-Tá louco? Aquela menina é uma fera. Aliás é esse o apelido dela. Lá no almoxarifado tem que lidar com os operários do chão de fábrica e ela não vai ter jogo de cintura pra isso. Ela é bem estouradinha.Aí o Zé sentiu que a sua velha amiga havia fisgado o anzol. Começou a dar linha para ver o que conseguiria puxar. E continuou:-Não sei não, Dona Clara. Ela entende bem das peças. Conhece todas, quase como eu.
– Exagerou um pouco.
-Não seja ingênuo Zé. Você é que conhece as peças todas de cor. Ninguém mais tem essa capacidade aqui.
-Tá bem, Dona Clara. Mas porque é que chamam essa menina de Fera? Eu até hoje não entendi.
-Bem. Como eu sei que você é uma pessoa discreta, e pela nossa amizade, eu vou te contar. – E continuou:
-Ela veio para cá, indicada pelo Atanásio e depois de ficar um ano como estagiária, se formou em contabilidade e foi contratada para a função. Na verdade, como o Atanásio, que era o gerente de controladoria e chefe dela, tratava aquela recém-chegada de maneira diferente dos demais, foi-se criando uma certa reserva em relação à ela. Ela entrava muda e saía calada. Não fazia amigos. Almoçava sozinha. Chegava e ia embora sozinha.
-Tá bem. Mas não era uma boa funcionária? – Perguntou o Zé.
-Sim. Claro que era. Além do mais, como era eficiente e rápida, criou inveja nos outros. Mas o Atanásio não escondia uma certa preferência por ela. Até ouvi boatos de que eles eram amantes.
-Mas a senhora acreditou nisso?
-Não. O Atanásio, que Deus o tenha, entrou aqui junto comigo. Sou amiga da mulher dele há muitos anos. Ele não seria capaz de uma coisa dessas. Ele só quis ajudar a menina. Viu nela algo diferente. Aquele homem era um Santo.
-Certo. Mas ainda não entendi por que o pessoal chama ela de Fera.
-É que ela não tem meias palavras. Se mexem com ela, responde na lata. Você sabe que as fofoquinhas acontecem. Aí quando envolvem ela, a menina fica uma Fera. Nunca tive problemas com ela. Mas para algumas funções, principalmente que envolvem lidar com pessoas, é necessário ter um pouco mais de tolerância. Na função em que ela está, está bem. É rígida com os números e implacável com os erros. E isso, lá vai bem. Acho até que pode ser promovida um dia. Mas no almoxarifado não daria certo.
-Entendo. – Disse o Zé. E continuou:-Tive pouco contato com ela mas às vezes isso é o tipo de comportamento de pessoas sofridas. Que já passaram por muita coisa na vida.-Ah, isso é verdade. Eu sei que ela não tem pai nem mãe. Vive sozinha. Outro dia após uma dinâmica de grupo eu fiquei conversando com ela um pouco e até incentivei-a a participar de alguma atividade voluntária na ala infantil da Santa Casa que fica aqui no bairro. E ela aceitou. Já participou de um treinamento e na semana que vem é ela que vai atuar.
-Que bom! Disse o Zé.
– Que tipo de voluntariado é?
-É leitura para crianças. Somente ler estórias. Você não quer ir também? Seria bom. Você também é sozinho.
-Eu não tenho muito jeito com crianças. – Disse o Zé.
-Não tem problema. É só ler para elas. Vamos lá. É toda quarta-feira depois do expediente. Começa às cinco e quinze e vai até às seis, na hora que chega a janta daqueles anjos.
-Que tipo de doença elas tem?
-São só crianças Zé. O que elas tem, não importa.Na esperança de que Rita fosse também, Zé aceitou o convite e se comprometeu a estar lá na próxima quarta no horário combinado.
Terminando o intervalo de almoço, voltou para o seu posto de trabalho, o seu labirinto como disse, e pôs a cabeça no inventário que tinha que terminar.
Código, peça, prateleira, conta, confirma, confere…E assim foi o resto do dia, até poder entregar todos os relatórios para a controladoria.
No caminho de casa, voltou alegre e até surpreso com a maneira astuta que tinha utilizado para arrancar as palavras da boca da Dona Clara. Não fez nada de mal, até porque não quer fazer fofocas e nem se aproveitar da situação em benefício próprio. Mas gostou muito de saber que a Ritinha havia aceitado o convite de participar das horas de leitura para crianças na Santa Casa. Não via a hora de chegar quarta-feira.
Como será que ela ia se comportar com aquelas crianças? Será que ia estourar?E como ele, o Zé, ia se comportar? Teria paciência de enfrentar aqueles serezinhos curiosos? Se fossem curiosos como ele, talvez tivessem alguma simbiose. Mas tudo era um enigma.
Essa vida é engraçada, pensou o Zé. Cada um forma uma imagem do outro em sua cabeça, de acordo com os seus próprios critérios e seus próprios medos. Um mundo cheio de preconceitos e pré-conceitos. Cheio de intrigas. Ele vivia sozinho e longe dessas volúpias mundanas que alimentavam a mídia, os famosos, os grupos sociais e até mesmo as famílias. Isso tudo afastava as pessoas da descoberta verdadeira do ser. O ser de cada um. Aquele lá no íntimo. Que só quer viver.O nosso Zé estava disposto a realizar uma grande descoberta. A de que todos estavam errados. Mas teria que cavar um pouco mais fundo naquele abismo e encontrar uma pessoa como todas as outras que só queria ser percebida. Que só queria ser amada.
Parte 8
A terça-feira passou como um furacão. O fechamento do inventário levou o dia todo e o Zé ainda teve que atender o balcão, porque a fábrica nunca para. Tem que semear máquinas o tempo todo.
Porém, no fim do dia, exausto de corpo e de mente, Zé não via a hora de chegar em casa. Foi para o ponto de ônibus como sempre e esperou a sua vez de embarcar.
Em pé, ficou ao lado de uma mulher bonita, ainda jovem que estava sentada com um menino no colo. A criança devia ter uns dois anos, pois já falava. Mas o que mais chamou a atenção do Zé foi o carinho e o cuidado que a mãe dispensava àquela criaturinha.
Aí tentou se lembrar se algum dia havia obtido aquele apreço. Aquele afeto. E chegou à conclusão que se houvera, não se lembraria. Pois perdeu a mãe ainda muito pequeno, na idade daquele menino. Com certeza a lembrança se perdera.
Veio à sua cabeça novamente aquela música do Erasmo “…estou sentado à beira de um caminho que não tem mais fim…”. E ficou pensando se não era hora de encontrar uma companhia.
O mais próximo que esteve de se apaixonar foi por uma professora bastante jovem no segundo ano do colegial, ensino médio, como é chamado hoje. Aquela mulher era simplesmente o máximo de ternura e volúpia que poderia conceber em uma fêmea. Dona Amália, como era chamada, era casada. Tinha um sorriso que fazia cintilar até o brilho do branco dos olhos do Zé. Um corpo que, apesar das roupas recatadas de professora, deixava retratar uma vitalidade que arrastava os olhares mais compenetrados. Um cheiro de pecado que deixava o nosso protagonista sem lavar as mãos um dia inteiro quando conseguia tocar pelo menos no dedo mindinho daquela deusa que lhe arrebatara a alma.
Porém, como o amor não escolhe a vítima, o tombo foi feio. Cheio de coragem, quando foi praticar o gracejo tão ensaiado, para dizer que ela era a mais bela de todas as donzelas naquele reino, os outros colegas ouviram, e justamente aqueles da turma lá de trás. A professora fez de conta que não ouviu. Mas os “malas” que estavam sempre procurando alguém para “Cristo” aproveitaram as palavras do Zé e começaram a chamá-lo de “Donzelo”…Foi um duro golpe. Ele tinha certeza que a professora tinha escutado a sua singela declaração de amor, se é que se pode chamar aquilo disso. Mas foi o suficiente para fazê-lo desistir de galanteios ou qualquer coisa parecida. Dali para adiante iria se concentrar nos estudos, apesar de ter virado chacota da turma. Isso não importava. Quem estava acostumado a viver sozinho, não tinha medo do isolamento.
Àquela altura, com quatorze anos, Zé ainda não havia vivido a experiência da empatia involuntária. Aquela de cruzar olhares e abrir as janela da alma. Isso aconteceu somente aos dezoito. Mas é um conto para outro canto…
No sacolejo do ônibus e perdido em seus pensamentos, quase se esqueceu de puxar a cordinha para parar o ônibus. Mas alguém acionou o dispositivo e o almoxarife de peças e de almas pôde descer no seu ponto.
Aquilo era quase um ritual. No caminho para a casa, apenas algumas quadras, via sempre as mesmas coisas. As mesmas cores. Os mesmos cheiros. As mesmas sombras.Parou na padaria. Comprou os pães de sempre. Seguiu pela calçada de sempre. Atravessou as ruas de todos os dias e chegou na casa de toda a vida.
Parece chato, mas não era. Zé amava aquilo. Cada elemento daquela rotina era uma engrenagem no mecanismo perfeito e imutável da sua vida cumprida a só. A solidão, por mais que se duvide hoje em dia, é uma arte. Pessoas solitárias são corajosas. E por que são tão corajosas? Por que não têm medo do maior fantasma da vida moderna: o “EU”. Esses seres solitários são realmente invejados. Eles conseguem ficar sozinhos consigo mesmos, sem precisar estar conectados… Isso é uma anomalia da vida moderna. Essas pessoas deveriam se tratar. Será?
Bom. É assim e pronto. Simples assim.Chegando em casa, cantarolando uma música qualquer, se deu conta que viver era o maior benefício que a própria vida poderia proporcionar. Era bom estar lá. Era bom saber que no dia seguinte estaria se desafiando um pouco mais. Vivendo aquela solidão. Espionando a vida dos outros. Mas era saudável e não fazia mal a ninguém. Cada vez que vivia esses espasmos de desvendar mistérios, se sentia mais vivo. Mais útil quem sabe. Mais Zé.
Como sempre fazia, viveu na plenitude mais aquela noite de sua solidão bem vivida e apreciou cada momento de estar consigo mesmo. Sem arrependimentos e sem medos. Sabia que no dia seguinte iria se arriscar e, quem sabe, se apoderar um pouco mais da maravilha da descoberta. Ritinha era um mistério atraente e perigoso. Era como avançar da noite para a aurora, mas no fundo, ouvindo o Réquien de Mozart, que ele mesmo compôs, para o seu próprio funeral.
E a luz se apagou…
Parte 9
Era difícil saber quando as lembranças dos “outros” iriam se manifestar. Dessa vez o pegou de surpresa. Tinha acabado de pegar no sono quando sentiu uma mão tocando os seus cabelos. Não eram na verdade os cabelos dele “Zé” mas os da Ritinha que agora reportava pelos seus sentidos e seu sub-consciente.
Abriu os olhos e viu o Atanásio tentando acordar Ritinha e falando:
-Acorda menina. Você vai se atrasar para a sua formatura. Eu passei aqui para te buscar, pensando que já estava pronta. Tem poucos minutos para se arrumar senão, não vamos chegar a tempo.
-Eu não vou.
-Como assim, não vai? É a sua formatura. Você batalhou tanto por isso.
-Não vou. Não batalhei nada. Foi uma mamata completa. Só fiz isso pela minha mãe que não está mais aqui. Então não devo nada pra ninguém.
-Rita. A sua mãe, onde quer que ela esteja, vai ficar muito contente te vendo receber o diploma com aquela toga bonita.
-Conversa fiada. A minha mãe não vai ver nada, porque já morreu. O meu pai não vai ver nada, porque não quer aparecer, ou já morreu também.
-Tá bem. Já que você não acredita que pode, mesmo sem a presença dela, prestar uma homenagem à sua mãe, faça isso por você mesma. Você é muito inteligente. E lá estarão também os seus colegas de faculdade que, apesar de não serem muito seus amigos, merecem estar lá como você e comemorar.
Rita começou a chorar silenciosamente, como sempre fazia e o Atanásio a abraçou. Ele agora, era a única pessoa que ela podia contar em sua vida. Convenceu-a a se preparar e a levou ao local da colação de grau onde chegaram em cima da hora.
A colação foi como todas as outras. Como se tratava de uma turma que era o rescaldo de outras, não se ocuparam de preparar um baile ou festa de formatura. Após a colação ela iria simplesmente jantar com o Atanásio.
Porém ocorreu uma um fato bastante curioso na hora da entrega dos canudos. Quando chamaram a Ritinha, o Atanásio não se manifestou efusivamente porque não queria chamar a atenção. Porém, além de alguns amigos que aplaudiram, Rita notou que havia um homem lá no fundo do auditório que estava sorrindo, aplaudindo e com lágrimas nos olhos. Como a próxima formanda a ser chamada era uma aluna que ela não conhecia, relacionou o homem a ela, mas mesmo assim ficou curiosa.
Depois disso, tirou fotos com a turma, uma foto discreta com o Atanásio, que para todos os efeitos estava lá prestigiando uma funcionária sua, e enfim, saiu para jantar com o padrinho.
Aí a memória dá um salto para outro momento em que ela está com uma uma colega vendo o álbum de formatura e o vídeo na sede da empresa de eventos que realizou os registros. Como Rita não tinha dinheiro e nem interesse nisso, encomendou somente duas ou três fotos que lhe interessavam.
Porém, no vídeo pôde identificar aquele homem que viu chorando na sua colação de grau e então, curiosa, começou a procurá-lo nas fotos dos outros formandos e não o encontrou.
Achou curioso pois aquele senhor não estava em nenhuma foto. Então porque estava lá com aquela expressão de êxtase e angústia no momento em que ela subiu ao palco? Aí, em uma foto da platéia pôde identificá-lo. Olhou bem e pediu para o rapaz da empresa ampliar a foto. Na tela do computador não conseguiu identificar nada familiar naquele rosto. Mas o homem estava de braços cruzados e o que mais lhe chamou a atenção foi uma pulseira prateada bem fina que usava no pulso direito. Ela sabia que aquela imagem lhe era familiar, mas não entendia bem de onde era. Pediu então que o rapaz fizesse o favor de imprimir aquela ampliação e, com mais três fotos, voltou para casa.
Nesse momento, Zé vive uma sensação inesperada. Aquela angústia sempre presente nas lembranças de Ritinha, dá lugar a uma alegriazinha, muito pequena, mas perceptível que aparece lá no fundo do túnel escuro dessa vida quase sem gosto.
Entrando em casa, como já era noite, foi direto para o seu quarto. Chegando lá, sentou-se na cama, ascendeu a luz de cabeceira e levou um susto. A primeira coisa que viu foi aquela pulseira de prata, ou uma muito parecida no pulso de seu pai, naquela foto velha, amassada e amarelada que foi salva de um incêndio, sabe lá Deus como.
Zé sentiu o coração de sua hospedeira acelerar a um ritmo frenético e começou a suar frio. A menina tirou da bolsa a impressão colorida daquela foto que havia ampliado e pôde comparar. Os braços, a pulseira e o abraço daquele homem.
Ficou radiante com a remota possibilidade de que aquele homem pudesse ser seu pai. Então, com um misto de alegria e revolta, olhou o rosto dele. Um pouco trêmula, buscou uma tesoura, com a qual recortou a cabeça do homem na impressão e a sobrepôs à foto do porta-retratos que já estava sobre a sua cama.
Zé, sem poder fazer nada por si mesmo, pois naquele momento quem estava no comando era Ritinha, ficou estupefato. Tinha tudo para dar errado aquela estória baseada em chances muito remotas. A cabeça era maior que o corpo. Parecia um transplante de cabeça em um corpo que já morreu. Nada se encaixava. Mas a pulseira era realmente muito parecida.
Sentiu ainda o cansaço de Ritinha que se abraçou àquele retrato como quem abraça uma bóia em um mar revolto, e o apagar da memória com a vinda do sono imponderável que se debruçou sobre ela.
Parte 10
Um dia tão importante não poderia começar sem um bom café e a escolha de uma roupa melhor do que aquele uniforme de operário padrão que daria lugar a uma vestimenta mais sóbria, pois onde iria à noite, não queria ser muito notado.
Saiu assobiando pela calçada e foi pensando na esperança. Antes de sair de casa, havia perguntado a um dicionário que lhe deu a seguinte definição: “Esperança é uma crença emocional na possibilidade de resultados positivos relacionados com eventos e circunstâncias da vida pessoal. A esperança requer uma certa perseverança – isso é, acreditar que algo é possível mesmo quando há indicações do contrário. O sentido de crença deste sentimento o aproxima muito dos significados atribuídos à fé.”
Fé? Esperança tem a ver com Fé?
Essa ideia ficou martelando na sua cabeça em todo o trajeto até a empresa. Era isso que mantinha aquela menina viva. A fé. Nada mais do que isso. Uma fé(zinha) muito pequenina de que o pai dela poderia um dia voltar. E agora aquela chama havia se avivado.Ficou então tentando descobrir de quando seria aquela lembrança que teve na noite anterior. Parecia bem recente. Como o Atanásio ainda estava lá, tinha que ser de pelo menos três meses atrás. E aí foi que se deu conta de que agora ela estava sozinha mesmo. Se a única pessoa que a acompanhou na formatura foi o Atanásio, com a morte dele então, não sobrou mais ninguém.
E se aquele sujeito da foto não fosse o pai da Ritinha? E se fosse somente uma coincidência infeliz e mais nada? O que era muito provável. Ritinha iria se apoiar naquela bóia em formato de pulseira de prata, até que fosse resgatada, ou esquecida eternamente no oceano do abandono. Isso seria terrível.
Zé ficou muito curioso com tudo aquilo e, por incrível que pareça, a esperança também o tocou. Para ele não importava muito se aquele era ou não o pai daquela menina que foi deixada para trás com quatro anos de idade. O que lhe motivava agora era descobrir a verdade. E descobrir antes de Ritinha.
Chegou ao trabalho, bateu o ponto e foi colocar o uniforme para iniciar a jornada. Trabalhou como sempre, com peças para lá, registros para cá e a coisa toda de atender tudo rápido, porém com aquela lembrança martelando a sua cabeça. Tinha que descobrir algo mais.
No almoço sentou-se ao lado de Dona Clara novamente, a sua amiga da área de Recursos Humanos. Entre outros assuntos que abordou para disfarçar seu real interesse, perguntou a ela se não poderia lhe enviar os dados pessoais de Ritinha porque gostaria de saber algo mais sobre ela, antes de fazer alguma abordagem a respeito da vaga de treinamento que estava pensando em solicitar ao seu chefe.
D. Clara disse que quando fosse possível e necessário fazer alguma abordagem, ela mesma o faria. E que não poderia compartilhar nenhum dado pessoal de funcionários. Essas eram regras internas. Zé respondeu que não tinha a intenção de quebrar nenhuma regra interna e que iria fazer então tudo pelas vias corretas, com a solicitação de uma vaga à gerência e o procedimento de aprovação, seleção interna, etc. Agradeceu e disse que não iria mais aborrecê-la com essas estórias.
Caiu em si. E percebeu que a maneira mais fácil de descobrir algo mais, seria se aproximando da própria Ritinha. Porém a conexão mágica se quebraria. Não poderia fazer isso agora. Ainda precisaria daquela janela aberta por um pouco mais de tempo. Mas precisava de datas. A única data que tinha era a do falecimento do Atanásio. As outras, teria que descobrir.O dia seguiu conforme o esperado e o sinal das 17h, quando as máquinas silenciam, soou na cabeça do Zé como um clarim de alvorada.
Trocou de roupa rápido como um raio e saiu ligeiro em direção à Santa Casa que ficava a três quadras da fábrica.
Chegando lá, encontrou D. Clara na portaria número 2, onde haviam combinado e seguiu-a até uma ala onde estavam várias crianças. Todas vestidas com pijamas e roupas de hospital, mas com uma característica em comum. Eram crianças carecas. Carecas de várias idades. Aí se deu conta de que era uma ala de tratamento de doentes de câncer. E as crianças é que eram os doentes.
Aquilo chocou-o profundamente. Naquele seu mundinho de rotina quase mecânica, nunca havia se submetido a internações hospitalares ou algo assim. Porém o olhar daquelas crianças era diferente. Tinham um componente especialmente atraente, além da curiosidade. Era um olhar cheio de esperança…Dona Clara o levou então a outra sala onde estava um orientador da atividade, que explicou ao Zé, e a mais duas pessoas, também candidatos a voluntários, que eles iriam ficar ali naquela pequena sala, ao lado da sala maior onde estavam as crianças, para acompanhar uma atividade de outra voluntária que iria atuar pela primeira vez. Pediu também que eles se conservassem em silêncio para não atrapalhar a concentração das crianças e informou que aquele vidro que separava as duas salas era coberto por uma película que não permitia que eles fossem vistos. Não era bom dar a impressão de que os pacientes estivessem sendo observados.
Ficaram em silêncio e então Rita entrou na sala de leitura. As crianças observaram calmamente Ritinha se instalar em uma cadeira à sua frente e abrir um livro para começar a leitura.
Ela aparentava estar um pouco tensa. Mas o orientador, sabendo que era o primeiro dia daquela menina na frente das crianças, foi logo quebrando o gelo e fazendo as honras. Disse que ela era uma princesa que morava em um castelo ali perto e que tinha vindo para contar estórias encantadas para eles. Falou um pouco mais, arrancando sorrisos daqueles rostinhos e deixando Ritinha um pouco mais à vontade.
Após as apresentações, Rita assumiu a cena com todos em silêncio, esperando suas palavras. Ela então disse que se sentia muito feliz de estar com eles ali e começou então a ler um livro que lhe deram dias antes para que treinasse a leitura. Então começou:
-Boa tarde crianças! Eu queria dizer que estou muito feliz por estar aqui com vocês. Eu nasci aqui na Santa Casa, na maternidade. E sei que as pessoas daqui cuidam muito bem de todos, com muito carinho e amor.
Essas palavras faziam parte do treinamento que Rita havia recebido dias antes. Eram para quebrar o gelo e preparar o início da leitura, que começou em seguida.
Era um livro de estórias infantis que falava sobre um menino de onze anos que morava sozinho em uma pequena casa na floresta. Havia sido deixado ali quando tinha seis anos de idade e seus pais foram levados por mercadores de escravos. Ele ficou escondido em um cesto de vime por ordem de seu pai, e por isso não foi levado também. Como sempre ia com o seu pai buscar frutas na floresta, aprendeu a encontrar o que comer. Sabia caçar também, pois tinha visto muitas vezes seu pai preparar armadilhas para pequenas aves. Tão pequeno ainda, sabia como acender o fogão a lenha para proteger-se do frio e para cozinhar a caça. E assim passava os dias, esperando que em algum momento seus pais voltassem para estar com ele.
O mais interessante é que esse menino tinha todos os dias que vencer desafios. Lutar pela própria vida. Defender-se de animais, proteger-se do frio e das tempestades. Mas quando os raios faziam aquele estrondo enorme, ele sempre pensava que o mundo era muito maior do que só aquela floresta. A floresta era enorme. Ele sabia disso pois cada vez que saia para caçar, explorava um pouco mais além. E vencer os desafios de todos os dias era o mínimo que ele poderia fazer para manter-se vivo. Mas aqueles clarões que os relâmpagos deixavam no céu não lhe davam medo. Somente lhe mostravam que havia algo muito maior do que aquele mundinho pequeno em que vivia. Sabia que tinha algo mais, além dos limites do inexplorado.Vivia uma vida a só. Não tinha com quem conversar e nem em quem confiar. Mas era forte. Porque o que os seus pais lhe ensinaram é que ele teria sempre que vencer as dificuldades. Parecia que estavam adivinhando que um dia seriam levados pelos contrabandistas de escravos.
Mas o menino nunca perdeu as esperanças. Nunca deixou de acreditar que seus pais um dia voltariam. Poderia demorar. Mas ele nem se importava com o tempo. Nem contava o tempo. O que o motivava é que tinha certeza que no dia seguinte haveria mais um dia. Haveria uma manhã, com chuva ou com sol, e os pássaros cantariam de novo. E haveria uma tarde para onde os animais se recolheriam em seus ninhos e tocas. E assim, um dia atrás do outro ele vivia uma coisa chamada esperança. Cuidando de si. Fazendo de tudo para sobreviver. Para viver mais com as suas próprias forças.
A estória terminou e Rita despediu-se das crianças com um sorriso um pouco forçado, pois aquele menino da floresta havia abalado a sua fraca auto-estima. O monitor assumiu e arrematou com a lição da estória, dizendo que, independente da ajuda dos outros, ou dos médicos, ou dos remédios, a força para enfrentar o dia de amanhã estava dentro deles. Era isso que mudava as coisas. Era uma estória linda de motivação e cheia de encantamentos para atrair a atenção dos pimpolhos curiosos que iluminavam aquela sala.
Então, como já era a hora da janta, as crianças foram levadas para as suas alas e Rita ficou na sala sozinha com o monitor, um senhor muito simpático, também voluntário, daqueles que sabe tudo da vida, que percebeu a sua tristeza.
-Rita. Um dos desafios dessa atividade é não deixar transparecer que nos abalamos, mesmo quando isso acontece. Foi a visão das carinhas dessas crianças carecas que te deixou assim?-Não. Nada disso. Eu me envolvi muito com a história. Tem muito a ver comigo.
-Como assim? Você também foi abandonada em uma floresta? – Falou tentando descontrair Ritinha.
-Fui abandonada em uma vida que parece que não me pertence. Minha mãe morreu há alguns anos e há mais de 18 anos estou esperando pelo meu pai que deu uns passos na escuridão da noite e sumiu.
-Não fique assim. Mantenha a esperança.
-Eu estava quase perdendo as esperanças mas há uns quatro meses tive uma visão que me trouxe de novo para a luz.
-Como assim! Disse o monitor.
-Eu tenho quase certeza que vi meu pai na minha formatura. Mas ele não se manifestou. Não me procurou. Não me mandou nenhum recado. Acho que era ele. Mas estou até agora esperando algum gesto.
-Não se preocupe querida. O que tentamos transmitir aqui é que a esperança nunca acaba. E um dia o seu pai voltará. Se você viu ele, é porque ele está te olhando. Está te vendo e te cuidando.Ainda com os olhos vermelhos, Rita despediu-se do monitor que lhe deu um abraço carinhoso e lhe disse para se cuidar no retorno para a casa.
Como estava atrás do vidro escuro, Zé viu e ouviu tudo. E também entendeu que tinha que ajudar. De alguma forma iria ajudar Ritinha a encontrar o pai.E assim, o dia acabou do mesmo jeito que havia começado. Com o significado da palavra esperança esperando por respostas.
Parte 11
O restante da semana se passou sem maiores novidades, na rotina do chão de fábrica e nas idas e vindas diárias no trajeto para o trabalho, e depois, dessa para casa.
Porém, quando teve tempo, Zé ficou matutando em como conseguir mais informações sobre o pai de Ritinha sem levantar suspeitas e tudo mais. Então traçou um plano. A partir de buscas na internet, como sabia em qual Instituição ela havia se formado, descobriu os dados da empresa que organizou a formatura. Então, com o endereço, decidiu que sábado iria lá para ver se conseguia esclarecer algo a respeito.
Sábado pela manhã, logo cedo, estava na porta da empresa de formaturas o nosso Zé. Entrou, cumprimentou o atendente e identificou-se como tio de uma aluna, Rita Moreira Alves. Disse que sabia que ela havia comprado poucas fotos da formatura e gostaria de fazer uma surpresa à sobrinha. Para isso precisava dar uma olhada em todas as fotos do evento para escolher as que achasse mais interessantes para a montagem de um álbum.
Com essa “mentirinha” conseguiu com que o rapaz o instalasse confortavelmente à frente de um computador, onde poderia calmamente verificar todas as fotos do evento e anotar os números daquelas que lhe interessassem.
Zé sabia bem o que estava procurando. Tinha certeza que iria encontrar alguma relação daquele homem misterioso, que Rita achava que era seu pai, com algum outro formando e depois daria um jeito de provar à menina que ela estava alimentando falsas esperanças.
Havia mais de mil fotos naquele arquivo. Foi passando uma por uma calmamente mas nada de encontrar o homem. Aquele sujeito não tirou fotos com nenhum dos formandos. O que estava fazendo lá então? Encontrou a foto da Ritinha com o Atanásio, a única pessoa que estava lá por causa dela.
Continuou passando as fotos até que chegou em algumas que registravam os convidados da cerimônia de colação de grau em closes enquanto estavam sentados. Em duas das fotos identificou aquele homem com a pulseira de prata. Escolheu uma delas para analisar melhor e pôde observar que no braço que não tinha a pulseira, um pouco acima do cotovelo, aparecia uma mancha escura. Como a pele do homem era um pouco clara, chamou-lhe atenção aquilo que parecia ser uma tatuagem. Foi então que, apertando em um botão de “zoom” no visualizador de imagens do computador, pôde aproximar e identificar melhor a mancha. Certificou-se que era de fato uma tatuagem, mas queria mais definição. Aproximou mais ainda a imagem até que, para a sua surpresa pôde enxergar bem a gravação. Eram duas tatuagens situadas sobre o bíceps direito, e como o homem estava vestindo uma camisa de mangas curtas, ambas estavam visíveis. As duas eram palavras ou letras. A que estava situada mais em cima parecia ser mais antiga, pois estava um pouco desbotada. Mas o que o deixou boquiaberto era o que estava escrito ao lado de uma pequena rosa vermelha. A palavra “RITA”, para o espanto do Zé, estava tatuada no braço daquele homem. Poderia ser só mais uma coincidência, mas parecia que não era.
Zé ficou perplexo e rolou a imagem para o rosto do homem. De fato pôde identificar naquele estranho, traços de Ritinha, principalmente o olhar. Ficou alguns minutos pensando naquilo tudo e voltou a verificar a imagem da pulseira no pulso esquerdo e depois novamente o nome “RITA” tatuado no braço direito. Traçou diversas perspectivas diferentes para o que estava vendo. Rita poderia ser uma ex-companheira ou mesmo o nome da mãe daquele sujeito. Não tinha que ser necessariamente aquela Ritinha que ele estava tentando decifrar.
Como já estava lá há muito tempo, para disfarçar escolheu algumas fotos e pediu que o rapaz as gravasse em um CD para que levasse para casa. Pagou, despediu-se e se foi.
No caminho até em casa, passou em um mercado para fazer suas compras rotineiras de fins de semana, onde aproveitou para almoçar. Chegando em casa, ficou curioso com o que havia vivenciado aquela manhã e foi dar mais uma olhada na foto em seu computador. Ao abrir, aproximou a imagem da tatuagem que havia decifrado essa manhã, mas percebeu que na tatuagem que estava mais abaixo também haviam letras. Talvez fosse alguma outra pista. Fazendo uma aproximação maior, ficou ainda mais perplexo. Era o desenho de uma caveira com uma vela acesa ao lado e logo abaixo dessa pequena imagem, estavam gravadas as letras PCC. Se aquilo era o que ele estava pensando, uma pista importante poderia estar na frente de seus olhos.
Fez uma busca na internet e encontrou várias tatuagens com caveiras e muitas com velas. Porém somente uma com caveira, vela e a sigla PCC. Era de fato uma tatuagem que identificava integrantes da facção criminosa “Primeiro Comando da Capital”. E aquilo poderia significar somente uma coisa. Aquele homem havia sido preso e poderia ser perigoso.
Zé ficou ainda mais ansioso e preocupado com o que poderia vir a descobrir. Pensou em como seria o nome daquele homem e lembrou-se que na primeira memória que teve de Ritinha, a mãe dela chamava o marido de “Batista”. E como o nome de Ritinha era “Rita Moreira Alves”, provavelmente o nome do sujeito era Batista Alves.Porém, como sabemos que podem haver muitas variáveis para um nome, havia grande chance de ser um nome composto por mais elementos como um “João”, um “Antônio” ou mesmo mais algum sobrenome de família. Estava ficando difícil.
Aquele homem poderia ter ficado preso por muito tempo. Talvez mais de 15 anos. Se isso fosse verdade, as peças poderiam se encaixar. O sumiço do pai de Ritinha poderia ter sido por causa de uma longa detenção. E talvez, para proteger a família, ficar sem fazer contato poderia ser uma ótima ideia. Teria que descobrir algo mais.
Pensar no que havia acontecido foi a principal atividade de Zé naquela tarde. Talvez a mãe de Rita soubesse da prisão. Talvez tivesse decidido não contar nada a ela para não decepcioná-la ainda mais.
Bem. Tudo aquilo era somente uma nuvem de conjecturas e nada mais. Não era possível chegar a nenhuma conclusão. Dali para a frente, precisava de dados concretos. Precisava de mais um plano.
Deixou então esses pensamentos para outro dia, pois precisava dar uma arrumada na casa e preparar uma janta, como sempre fazia aos sábados à noite. Depois de tudo pronto, foi dormir exausto pois teria que levantar cedo para ir visitar seu pai na casa de repouso no dia seguinte, como quase sempre fazia aos domingos.
Parte 12
Era um dia lindo de sol, ainda no frescor da manhã quando Zé chegou na casa de repouso. Cumprimentou os amigos de seu pai e sentou-se ao lado dele. Estavam todos acomodados em uma grande varanda jogando conversa fora. Alguns daqueles homens e mulheres não recebiam visitas nunca, pois tinham sido esquecidos para morrer naquele lugar. Mas apesar disso, parecia não haver problemas, pois mesmo com os efeitos que a velhice provoca nos corpos e nas mentes de todos, aqueles seres eram felizes.
O pai do Zé também era chamado de Zé. Mas era o “Seu Zé-zinho”. Parecia estranho para um homem idoso e que não parecia ser tão pequeno assim. Tinha estatura média e não era magro. Esse apelido foi dado a ele porque quando chegou lá, já havia outro Zé habitando aquela casa, e o sujeito era grande demais. Quase dois metros de altura por um de largura. Era quase um “Zé-zão”. Mas isso não importa. O Zé (Zé-zão)já havia se despedido dessa vida por causa do diabetes. Primeiro perdeu o pé, depois a perna, a visão e, um pouco mais tarde, a vida.
E agora. É tanto Zé que não sei mais de quem estamos falando.Brincadeirinha…
O nosso Zé estava lá para cumprir o seu papel de filho e fazer mais um pagamento pela parca atenção que recebeu do seu velho. Foi então que o seu pai levantou-se e pediu que lhe acompanhasse até seus aposentos, pois tinha que mostrar algumas coisas. Chegando lá, o velho Zé-zinho lhe mostrou uma velha caixa de sapatos com lembranças, com coisas que o Zé nunca havia visto. Eram várias cópias de chaves de caminhões que o seu velho guardava de recordação, algumas fotos, cartas, documentos amarelados e outras quinquilharias. Ficaram olhando e vasculhando aquilo tudo até encontrar uma foto antiga da sua mãe ainda grávida. Essa foto ele nunca havia visto.
Quando Zé pegou a foto nas mãos, seu pai lhe disse:
-Era isso que eu queria te mostrar, apontando para um pôster na parede.-Mas pai, onde estava essa foto. Eu não sabia da existência dela.
-É que o pessoal aqui da casa nos fez arrumar tudo para jogar coisas velhas fora. Tem gente que guarda muita tralha né filho. Eu não sou de ficar guardando coisas, até porque sempre vivi na cabine de um caminhão que é um espaço limitado. Mas fazendo a limpeza que eles me pediram, encontrei nessa caixa, esse pôster velho do time do Corinthians de 1977 quando o timão foi campeão do Paulistão depois de 22 anos de jejum, filho.
-Pai. Eu não estou querendo saber de futebol. Quero saber sobre essa foto da minha mãe grávida. Como ela era linda!
-Filho. Essa foto estava enfiada dentro daquele pôster. Mas tudo bem. Eu queria te mostrar o pôster mesmo. Olha só como ele fica bonito na minha parede.
Havia colado o pôster desbotado com aquelas marcas de quase quarenta anos de dobras bem feitas. Mas isso não importava. Zé estava interessado mesmo era na foto. Não tinha o menor interesse em futebol. Parecia que ele e seu pai viviam em planetas distintos.
Então pediu a seu pai para ficar com a foto. O velho logo consentiu, pois parecia que aquilo não lhe pertencia.Antes de se despedirem, após alguns outros assuntos de saúde, dinheiro e remédios, o velho lhe deu uma certidão de nascimento que lhe pertencia e que havia encontrado junto naquelas tralhas. Era a sua própria certidão. A primeira. Escrita à mão ainda.
Dentro do ônibus, no caminho para casa, ficou observando a foto de sua mãe e imaginando como teria sido bom se ela não tivesse morrido quando ele nasceu. Como teria sido importante para ele a presença da mãe em sua vida. Aí, abriu a sua primeira certidão de nascimento que estava dobrada dentro de um saco plástico. Foi desdobrando com muito cuidado para não despedaçar aquele papel frágil e amarelado. Começou a ler tudo. A data, o nome de sua mãe, o do seu pai, o local de nascimento e tudo mais. De repente teve um estalo. Os nomes completos dos pais estão escritos na certidão de nascimento dos filhos. Será que ele conseguiria uma certidão de nascimento da Ritinha em um cartório. O que seria preciso para isso?
Foi pensando sobre isso e, com a ternura da imagem da sua mãe grávida que não lhe saía da cabeça, caminhou até em casa, comeu alguma coisa e foi tirar aquele cochilo das tardes de domingo. Antes de dormir ainda lembrou-se do que Rita havia dito naquele dia em que foi ler para as crianças, que havia nascido naquele hospital. Na Santa Casa. Então pensou em procurar algum cartório próximo da Santa Casa. Pois muitas pessoas tinham o costume de registrar os filhos no cartório mais próximo à maternidade, logo após o nascimento.
Bem. Essa nova parte da aventura ficaria para segunda-feira. Agora só queria descansar um pouco. Mas foi bem nessa hora, logo após pegar no sono que a mágica aconteceu novamente. Ritinha ressurgiu do abismo que habitava, mas dessa vez não estava sozinha.
Encontrava-se dentro de um cinema. Dava para ver somente a luz da tela, algumas imagens e o som do potente sistema acústico 5.1 da sala. Era um ambiente moderno pois as cadeiras eram confortáveis e parecia ser uma dessas salas de redes de cinema instaladas em shopping-centers. Estava assistindo um filme que Zé já havia visto na TV. Era um filme brasileiro. O Palhaço. Sabia que estava na pele de Rita, pois sentia aquela angústia que só as lembranças dela poderiam lhe trazer. Sentiu a apreensão de Rita quanto ao destino do protagonista do filme, quando deixou o circo em busca de descobrir o que queria ser na vida. A trama se desenrola até que o rapaz descobre que tudo o que ele precisava estava naquele circo e naquela vida junto com o seu pai e seus amigos.
O filme termina e Rita sai do cinema. Ela não estava sozinha. Vai em direção à saída e sente que alguém lhe toca no ombro. Ela vira para trás e vê uma colega da faculdade, a mesma que estava com ela quando identificou as fotos da formatura. Tudo indica que estavam no cinema juntas. Caminhando lado a lado, continuaram em direção à porta de saída do shopping. Já na rua, seguiram caminhando e conversando:
-O que você achou do filme Rita? – Perguntou a amiga.
-Achei muito legal. Às vezes a gente acha que a nossa vida é chata. Mas pode ser a melhor opção que a gente tem. E você, o que achou?
-Não sei. Achei meio esquisito. Aquele circo no meio do nada. Parece uma gente sem futuro. Sem eira nem beira.
-Mas eles eram felizes, parece.
-Parece sim. Mas eu não sei não. Eu me esforço tanto para mudar de vida. Meu namorado é um acomodado que só quer saber de futebol e outras futilidades. Não sei se vai mudar. Eu queria muito mais para a minha vida.
E continuou…
-E então Rita, o que você vai fazer agora que está formada?
-Não sei não, Cláudia. Vou continuar no meu trabalho. Pode ser que apareça alguma coisa melhor lá na empresa mesmo. E você?
-Ah. Eu sempre sonhei em mudar de emprego. Trabalho como escrava naquele escritório de contabilidade e não tenho futuro lá.
-Cláudia. O futuro é algo que não existe.
-Nossa! Como você é pessimista. Eu einh?-Eu não sou pessimista. Sou realista. Tive uma vida de merda até agora e acho que terei que continuar isso por muito tempo Cláudia.
-Vem cá. E aquele cara que você viu na foto da formatura. Era teu pai mesmo?
-Eu não sei. Achei que era. Mas pode ser só alguém parecido mesmo. Sou mesmo uma burra. Sempre fico pensando que meu pai vai voltar.
-Será que era o teu pai?
-Eu sei lá. Nunca me procurou. Não ia me procurar agora.
-Rita. Eu também não tive pai. Minha mãe me teve com 16 anos e fui criada pela minha vó, pois a mãe tinha que trabalhar como empregada em casa de família. E só vinha me ver nos fins de semana.
-Bem. Parece que somos duas desgarradas mesmo. Mas você ainda tem a sua mãe. Eu não tenho mais ninguém. Vivo sozinha nesse mundo.
-Não fala assim menina. Eu sou tua amiga. A gente pode se ver de vez em quanto.-Sei. Só quando tiver jogo do Palmeiras. Que o teu namorado vai pro estádio e não fica grudado em você…
-Ah. Não é bem assim. A gente se gosta e rola sempre um lance gostoso…
-Que lance gostoso que nada. Eu não tenho paciência para ficar cuidando de homem não, Cláudia. Eles que se cuidem sozinhos.
-Eh. Tá difícil em menina. Você tem que arrumar um homem. Tá ficando muito chata Rita.
-Que nada. Eu estou bem assim. Vivo sozinha. Tenho a minha casa, o meu trabalho e não tenho que dar satisfação pra ninguém…
-Tá bom. Vamos parar por aqui que lá vem o teu ônibus. Te cuida tá.
-Tá bem. Te cuida Cláudia. Outro dia de jogo, a gente sai de novo.Despediram-se e Rita entrou no ônibus. Quando sentou-se no coletivo, a conexão terminou.
Zé acordou perto das 18h. Levantou-se e foi preparar um café. Ligou a TV e enquanto o Faustão falava as asneiras de sempre, ficou pensando que sua vida era tão solitária quanto a da sua hospedeira. Aquela menina devia mesmo ser muito sozinha. Estava acomodada naquela vida pequena, como a dele mesmo, mas poderia ser a única que tinha, como ela mesma havia falado sobre a escolha do Palhaço do filme.Tem gente que vive pensando que a grama cresce mais verde no jardim do vizinho. Viver a vida dos outros é uma experiência que pode, por vezes, não ser muito prazerosa não. Essa aventura que o nosso protagonista está vivendo, está mexendo com ele. Por que que não cruzou os olhos com um famoso jogador de futebol ou um empresário de sucesso dessa vez? Tinha que ser logo esse bichinho com apelido de “Fera” e com uma história tão complicada?
Mas não tinha jeito. Agora Ritinha fazia parte da sua vida. E antes de deixá-la, tinha que saber um pouco mais. Isso era um vício. Quando começava, não podia mais parar.
Parte 13
Segunda-feira era um dia engraçado. Enquanto para a maioria das pessoas era um dia em que precisavam de um esforço a mais para enfrentar, para ele, o Zé, era um dia bom. Era o retorno ao trabalho que lhe deixava contente. Era como o nascer do sol. Representava a continuidade. Sabia que mais uma semana estava garantida e preenchida com tudo o que precisava para viver.
Porém, aquela segunda seria um pouco diferente. Estava decidido a sacrificar o seu horário de almoço para procurar o cartório mais próximo da Santa Casa e tentar obter uma cópia da certidão de nascimento de Ritinha.
Passou a manhã ocupado com a rotina de uma segunda-feira normal, onde todos parecem estar mais interessados em levar a vida e os chefes mais pressionados pelo avanço do mês ao encontro das metas de produção e vendas.
Com a autorização de seu chefe conseguiu sair vinte minutos antes. Foi caminhando mesmo que chegou ao cartório mais próximo ao hospital, pois ficava a três quadras da fábrica. Entrou, pegou uma senha e aguardou alguns minutos.
Pediu então a certidão de nascimento de Rita Moreira Alves e deu também a data de nascimento, pois havia visto na intranet da empresa, na lista de aniversariantes. Porém o atendente ali mesmo no balcão, em frente a um terminal de computador, já lhe informou que não havia registros dessa pessoa naquele cartório. Foi então que Zé lhe perguntou se havia algum jeito de saber em qual cartório da cidade poderia encontrar. O rapaz lhe disse que havia mais de vinte cartórios de registros civis na cidade de São Paulo e que poderia ter sido em qualquer um. Zé então lhe perguntou há quantos anos que aquele cartório estava nesse endereço. O rapaz lhe disse que estava ali há oito anos, quando foi fundado. Lhe informou ainda que antigamente o único cartório daquela redondeza era um que agora estava instalado um pouco mais adiante, dentro de um shopping.
Zé saiu rápido em direção ao shopping onde encontrou o cartório e rapidamente estava com uma cópia da certidão de nascimento de Ritinha em suas mãos. Manteve o envelope fechado e dirigiu-se à praça de alimentação para almoçar. Enquanto esperava que o seu pedido ficasse pronto, abriu o documento e conferiu o nome do pai de Rita. Era João Batista Saturnino Alves.E agora? O Que iria fazer com aquela informação?Sabia que o homem havia sido preso, pois ninguém seria tão louco a ponto de tatuar o símbolo do PCC no braço sem fazer parte desse mundo. Qualquer um que ostentasse no braço uma tatuagem do PCC tinha que ter passado algum tempo na prisão. Então a dica estava dada. Tinha que dar um jeito de procurar nas prisões. Mas como poderia fazer isso? Tudo levava a crer que naquele momento o homem estava livre pois tinha ido à formatura de Rita há quatro meses atrás. Como poderia obter mais informações a respeito daquele sujeito que sabia se esconder tão bem?
Foi então que lembrou-se que seu vizinho era um advogado criminalista, desses de porta de cadeia, que vivia defendendo criminosos de todos os tipos. Era já um senhor mas ainda estava na ativa. Como tinham uma relação cordial e de vez em quando o Zé lhe fazia o favor de olhar a sua casa quando ele viajava com a família para o litoral, sentiu-se no direito de procurá-lo para pedir um pequeno favor.
Voltou para a fábrica e cumpriu sua rotina de bom funcionário o restante da jornada. No retorno para casa, no ônibus, foi pensando em como abordar o vizinho advogado para sensibilizá-lo a ajudar na busca que estava determinado a fazer.
Chegando em casa, deu sorte em encontrar o homem regando as plantas no jardim em frente à casa. Foi logo cumprimentando.
-Seu Antônio, como estão as coisas?
-Tudo bem, seu Zé.
-Está uma linda tarde para regar as plantas.
-Sim. Com esse tempo seco que estamos tendo, essas criaturinhas verdes ficam muito necessitadas de água. Só estou dando uma forcinha para natureza.
-Seu Antônio. Eu ia lhe procurar mais tarde. Mas já que nos encontramos aqui podemos conversar um pouco?
-É claro Zé. É sempre um prazer. Você está precisando de alguma ajuda? Se for ficar fora uns dias pode deixar que eu olho a sua casa.
-Não. Nada disso Seu Antônio. O que estou precisando é de uma ajuda profissional.-Não me diga. Você matou alguém? – Falou sorrindo em tom de brincadeira.
-Nada disso vizinho. É que tenho uma amiga que está procurando o pai desaparecido há mais de quinze anos e agora ela tem uma pista.
-Eu não sou detetive Zé. Sou advogado.
-Eu sei Seu Antônio. É que eu descobri que o homem esteve preso. Será que com o nome dele o senhor poderia conseguir alguma informação a mais para mim?
-Não tenho certeza mas posso tentar. Afinal, com mais de trinta anos de convivência com a justiça, delegados e presidiários, tenho muitos conhecidos e alguns que me devem favores. Vou ver o que posso fazer e lhe dou uma resposta em alguns dias.
-Muito obrigado vizinho. Aqui nesse papel está o nome dele, que é tudo o que sei. Sabia que poderia contar com a sua experiência.
-Não é nada não. Mas se a sua amiga precisar de ajuda profissional é só dar o endereço do meu escritório.
-Tá bom Seu Antônio. Muito obrigado por enquanto. Quando precisar é só me chamar. Estou em casa todas as noites.
– Ótimo Zé. Assim que tiver alguma informação eu lhe aviso.Assim terminou o diálogo e Zé entrou para a sua casa, onde a solidão lhe aguardava.Na verdade estava gostando daquela aventura toda. Sair por aí atrás de algumas pistas para poder obter informações sobre alguém era muito excitante. Além do mais, ter encontrado a tatuagem do PCC no braço daquele homem, naquela foto que não lhe pertencia, já era uma experiência muito empolgante para ele que sempre teve uma vida muito simples e pacata.Voltou ao seu mundinho. Jantou e assistiu o noticiário na TV. Foi dormir exausto pois a semana apenas havia começado.
Parte 14
A terça-feira começou quente e seca como o dia anterior. Zé chegou ao trabalho pontualmente às sete e meia da manhã e dirigiu-se ao seu posto atrás do seu balcão de almoxarife.
Teve uma manhã normal como as outras, almoçou, iniciou a jornada da tarde e a concluiu como sempre, sem percalços, pois tudo estava lá, no lugar certo, o tempo todo.
Porém, o que não estava no lugar certo era aquela estória toda da busca pelo pai de Ritinha. Durante aquele dia não a havia visto, mas sabia que ela estava no trabalho porque recebeu um e-mail seu com solicitação de informações sobre algumas notas fiscais, como era comum acontecer. Aquela espera, ele sabia, iria deixá-lo um pouco ansioso.
Com o fim da jornada Zé voltou para casa. Mas quando passou pela padaria para comprar o seu pãozinho como em todos os dias encontrou o Seu Antônio na saída e foram caminhando juntos até em casa.
-Boa tarde Zé. Tenho notícias sobre o pai da sua amiga.
-Que bom. Como foi rápido Seu Antônio.
-Foi fácil. Foi só descobrir o apelido do homem. Esse sujeito, esse João Batista Saturnino Alves era, na verdade, um bandido conhecido como “Filé” e foi, durante um bom tempo, um dos líderes do PCC. Esteve preso por muitos anos no Carandirú. Mas quando o complexo foi desativado ele foi encaminhado para outra penitenciária no interior do Estado.
-Que bom que o senhor encontrou essas informações.
-Eu não acho muito bom não. É melhor a sua amiga não saber de nada disso. Porque o homem foi posto em regime semi-aberto há seis meses. E você sabe. Um sujeito desses, por mais que tenha pago a sua dívida com a sociedade sempre fica devendo para alguém.
-O que o senhor quer dizer com isso, Seu Antônio?
-O que eu quero dizer é que esse Filé era um bandido muito perigoso. Assalto a carro forte. E o dinheiro nunca foi encontrado. Os comparsas podem pensar que a grana está com a família.-Isso é ridículo. A mãe dela já morreu e a menina mal ganha pra se sustentar.
-Mas se o pai dela sumiu há dezoito anos, como você disse, é melhor ela não saber do que aconteceu. Agora já acabou.
-Como assim, acabou. O homem esteve na formatura dela há um pouco mais de quatro meses e pode estar tentando se aproximar. Ela até está esperando que ele apareça a qualquer momento.
-Fique tranqüilo homem. Esse não vai mais aparecer.
-Como assim. Como pode ter certeza disso?
-É que ele foi assassinado há uns vinte dias. Estava andando na rua e levou cinco tiros de uns bandidos que passaram em uma moto. Foi enterrado como indigente. Provavelmente foi queima de arquivo ou vingança do mundo do crime.
-Nossa. Que coisa. Nem teve tempo de falar com a filha.
-Melhor assim Zé. Se essa moça é uma pessoa de bem, não merece o pai que teve.
-Como assim, Seu Antônio.
-Zé. Esse sujeito era perigoso. Ele roubou, matou e se envolveu em tudo quanto é tipo de crime que se pode cometer dentro de um presídio. Era um elemento extremamente alheio à ética e à vida em sociedade.
-Eu entendo Seu Antônio. Mas estou chocado com isso tudo. A menina tinha esperanças de ainda encontrar o pai. A mãe dela morreu há pouco tempo e ela está sozinha no mundo.
-Bem, não me parece tão sozinha. Se você é amigo dela, ajude. Mas vai ajudar mais se não contar nada sobre o pai dela.
-Tá bem Seu Antônio. Muito obrigado pela ajuda. É sempre bom contar com pessoas experientes como o senhor.-Fique tranquilo Zé. Não me deve nada. Somos bons vizinhos e sempre podemos nos ajudar. Boa noite.
-Boa noite Seu Antônio.Aquilo caiu como uma bomba na cabeça do nosso almoxarife. Sua aventura de detetive havia terminado muito rápido.
Entrou em casa. Tomou um bom banho e foi preparar a sua comida. Enquanto cozinhava ficou pensando em uma estratégia para fazer chegar à Ritinha a noticia de que seu pai não iria mais procurá-la. Foi então que decidiu deixar de ser um agente passivo e passar a ser um pouco mais atuante nessa história.
Decidiu que iria escrever uma carta passando-se pelo pai de Rita e que iria fazer essa carta chegar até ela de alguma maneira.
Parte 15
No dia seguinte, Zé acordou mais cedo que de costume. Com algum esforço conseguiu fazer um zoom naquela foto do pai de Ritinha com foco na pulseira e imprimiu. Tinha que, além da carta, entregar alguma prova de que era mesmo o pai dela que estaria entrando em contato. E aquela pulseira de prata era o único elo reconhecível pela menina.
Após a rotina matutina do trabalho, sacrificou o horário de almoço para ir até uma joalheria que conhecia, pois havia mandado polir e cuidar algumas vezes da aliança e de um anel que sua mãe havia lhe deixado, únicas lembranças também. Até nisso a conexão com a história de Ritinha era interessante. Chegando lá, conseguiu ser atendido pelo joalheiro que aceitou o desafio de reproduzir aquela pulseira de prata tal como estava na foto.
Mas havia um problema nessa estória da pulseira. Como é que poderia dar aspecto de jóia usada para uma peça nova que acabara de ser fabricada? Teria que resolver esse problema também. Então decidiu compartilhar a dúvida com o joalheiro que lhe disse que havia várias maneiras de fazer isso. Na fabricação ele mesmo já poderia deixar com menos brilho, fazendo um polimento mais básico. Porém isso não seria o suficiente. Uma peça dessas sendo usada por mais de 20 anos, que é o que parecia, teria marcas, arranhões e outras cicatrizes do tempo que não tinha como reproduzir diretamente na confecção de uma peça nova. Essa tarefa ficaria mesmo para o Zé.
Muito bem então. A pulseira ficaria pronta em dois dias e, enquanto isso, ele teria tempo para pensar em como “envelhecer” aquela peça que deveria ter testemunhado muitos crimes. Mas esse não era o maior problema. O desafio ainda estava em como escrever essa carta. Que estória iria contar? Que mentira teria que inventar para acalmar o coração daquela menina sem deixá-la angustiada ou arrependida? Seriam dias difíceis até que pudesse responder a todas essas perguntas.
No retorno ao trabalho Zé parou para fazer um lanche, entrou no turno da tarde pontualmente como sempre e dedicou-se à sua tarefa de atender a todos, sendo rápido como um raio, como sempre. Lembrando de tudo como sempre. Fazendo tudo como sempre.
No retorno para casa, no ônibus, ficou se desafiando em pensamento. Não era um sujeito criativo. Tinha uma boa memória, é verdade, porque praticava isso todos os dias no seu trabalho de almoxarife indispensável. Porém todas as vezes que havia sido desafiado a ser criativo, não tinha obtido muito êxito não. Mas o que significava ser criativo? Era saber contar mentiras sem ser descoberto? Do seu mundo reto, normalmente a criatividade não estava convidada a fazer parte. Mas vamos lá. Às vezes somos compelidos a fazer coisas para as quais temos que desenvolver velozmente competências ou virtudes que não tínhamos até então. Mesmo que sejam temporárias. Naquela noite teria que transformar-se em um contador de estórias.
Passou pela padaria, como sempre, caminhou na calçada esquerda como sempre. Contou os passos, como costumava fazer. Entrou naquela casa silenciosa e solícita. Preparou sua comida com o prazer de todas as noites, pois era uma das poucas coisas que gostava de fazer para si mesmo. Após jantar e tomar um bom banho sentou-se em frente ao computador, abriu o editor de textos e ficou ali como se estivesse esperando baixar um espírito que o fizesse psicografar uma carta que não sabia nem como começar. Mas começou. Escreveu a primeira frase, a segunda, terminou o primeiro parágrafo e parou. Imprimiu, leu e rasgou a folha. Aquilo estava uma droga.
Não era a sua praia inventar mentiras. Conhecia a verdade. Porque não contar? Ele tinha as respostas. Sabia que, àquela altura, Ritinha conhecer a verdade sobre seu pai, faria o mundo desmoronar. Agora estava fácil de entender porque a mãe dela evitava falar no marido. Parecia que sabia de algo.
Zé tentou escrever mais um pouco mas não teve êxito. Cansou e foi dormir.Naquele sono, quase lúgubre, quase inquieto, teve, o que seria a última visita de sua hospedeira misteriosa e quase desvendada. Sentiu-se em um ambiente escuro e barulhento. Parecia uma boate, ou casa noturna. Viu que estava na pele de Ritinha novamente. O som era muito alto e notou que a menina não estava sozinha. Estava acompanhada de um rapaz que não tinha visto ainda em outras lembranças. Notou que Rita estava incomodada com alguma coisa. De repente ela deixou o rapaz lá sozinho e foi embora. Saiu porta afora sem dar adeus nem satisfação a ninguém. Porém, ao passar pela porta de saída, Zé notou que alguém estava olhando fixamente para ela. Rita não reconheceu, pois esse evento era provavelmente um acontecimento anterior à formatura. Mas era o pai dela. Ele estava do lado de fora da boate encostado em um carro. Enquanto ela esperava um taxi, ele ficou observando-a. Para Rita, era só mais um sujeito olhando para ela. Mas para o Zé, que já sabia de quase tudo, aquilo significava algo mais. Significava que o pai dela, assim que saiu da prisão, começou a segui-la. Talvez com a esperança de alguma abordagem.
Rita entrou em um taxi, deu o endereço de casa e se foi. Chegando em casa, jogou-se na cama, do jeito que estava e dormiu. A última janela de fechou.
Parte 16
Quando acordou, pela manhã, Zé ficou entusiasmado com o fato de ter encontrado algo. Talvez a descoberta de que o pai de Rita estava seguindo-a pudesse significar alguma coisa. Mas principalmente, que ela não estava tão sozinha quanto pensava. Aí teve a ideia de criar a ilusão de que em toda a sua vida o pai estava observando-a de longe, mas impedido de se aproximar.Isso parecia ridículo. Mas podia significar que ele não estava tão errado assim. Ele poderia inventar uma estória com um misto de verdade e ficção. A parte da verdade era que ele teve que se afastar da família porque estava envolvido em problemas graves com a justiça e com gente perigosa. E para proteger a mulher e a filha aproveitou o momento do incêndio e sumiu. A ficção ficaria por conta de estar sempre acompanhando a vida dela mesmo que de longe. Por conta das memórias Zé saberia o suficiente para convencê-la que, de alguma forma, o pai sempre esteve presente.
Bem. Tudo isso era possível. Mas como explicar que depois de tantos anos ele ainda não poderia se aproximar dela, especialmente em um momento tão difícil? Isso ficaria por conta de, talvez, uma doença grave, ou mesmo o fim de sua vida. Como o seu vizinho advogado lhe havia dito o nome do cemitério onde haviam enterrado o pai dela, seria fácil convencê-la disso.
No ônibus foi pensando em como enfrentar aquele editor de textos à noite e ficou pensando nisso durante todo o dia, enquanto trabalhava, enquanto almoçava e enquanto pensava.
Na hora em que estava saindo da empresa viu Ritinha na fila do relógio ponto. Cumprimentou-a cordialmente mas sabia que estava prestes a criar um fato muito importante na vida dela. Iria dar um ponto final naquela espera de uma vida inteira sobre o paradeiro do seu pai. Talvez o fim dessa espera pudesse significar uma vida nova para ela. Uma ruptura com um passado angustiante que não importava nada no presente. Era somente uma sombra.
Depois do portão da empresa cada um foi para um lado e Zé entrou em seu ônibus esperançoso de estar pronto para preparar, naquela noite, o que seria o melhor desfecho possível para a história da vida de Ritinha. Uma menina que vivia angustiada mas que tinha esperanças. Um bichinho arisco, mas que era doce por dentro. Ela só queria sentir-se amada.
Chegando em casa, Zé cumpriu o seu ritual de preparar a janta com dedicação e saboreou aquele bife com batatas como se fosse o melhor “à la carte” que pudesse ter. Depois disso, banhou-se e prostrou-se novamente em frente àquele computador, àquele editor de textos, àquela folha em branco, onde poderia traçar qualquer linha, escrever qualquer palavra, relatar qualquer mentira, denunciar qualquer verdade. Mas estava disposto a fazer bem feito. Aquela lembrança de Rita na noite anterior levou-o a pensar que nem tudo estava perdido. E pôs-se a escrever.
Dessa vez parecia que seus dedos corriam mais suavemente sobre o teclado. Não teve dificuldades em encontrar as palavras. Não sentiu medo daquilo que estava escrevendo. Não pensou muito nas conseqüências. Parecia que o espírito escritor, que na noite anterior estava um pouco indeciso, hoje era um autor de verdade, um contista, um mentiroso, um criador de sonhos.
Terminou. Imprimiu. Leu e ficou satisfeito.Foi dormir como há muito não ousava ir. Com aquele ar de missão cumprida.
Deitou-se e não sonhou mais.
Ritinha não veio.
Ficou lá no fundo do abismo.
Mas logo seria resgatada.
Seria salva.
Estava tudo pronto.
Só faltava o desfecho.
O desenleio da trama toda.
Havia conseguido.
Tinha chegado não sabia como.
Mas estava lá.
Tudo pronto.
Parte 17
Como em todos os dias o café da manhã foi tranqüilo mas com algo mais. Estava prestes a fazer uma boa ação. Intervir na história de uma pessoa consertando o passado e desenredando o futuro.
Foi para o ponto de ônibus pensando no que estava prestes a provocar. Qual reação Ritinha teria ao ler a carta? Como seriam os seus dias dali para diante?
Bom. Isso tudo eram detalhes importantes mas agora tinha que concluir o plano. Chegando ao trabalho foi logo pesquisar na produção algum equipamento onde pudesse fazer com que aquela pulseira nova ficasse parecendo com uma que fora usada por mais de vinte anos. Saiu de lá com a solução. Encontrou um equipamento utilizado para polir peças através do atrito com areia. Iria colocar a pulseira dentro de um pequeno saco com areia e iria deixá-la girando por um tempo até que estivesse como esperava. Planejou tudo para o período da tarde pois iria buscar a peça na joalheria somente no horário do almoço.
Concluído o turno de trabalho da manhã e, como há dois dias atrás, dirigiu-se rapidamente à joalheria e retirou a pulseira. Era, de fato, um ótimo trabalho. No retorno para a fábrica parou para um lanche rápido. E ainda antes de os outros colaboradores voltarem ao trabalho, foi até à máquina de polimento e executou o plano. Em menos de dez minutos aquela pulseira estava tão usada e batida que ninguém diria que havia acabado de ser produzida. Aquilo era mesmo uma máquina do tempo. Não se podia viajar nela mas transformar coisas novas em velhas e, ao mesmo tempo, coisas velhas em novas, pois era para isso que se prestava o equipamento. Mas deixa pra lá. O importante agora é o desfecho.
Cuidadosamente colocou a pulseira e a carta dentro de um envelope que tinha uma etiqueta onde estava escrito o nome Rita Moreira Alves. Encaminhou-se ao setor de recebimento fiscal onde trabalhava Rita e, como os funcionários ainda não haviam voltado do almoço, simplesmente largou o envelope sobre a mesa de trabalho da menina que, iria em alguns minutos ter um encontro com o passado. Talvez não fosse aquilo que ela esperava, mas pelo menos teria respostas.
Como havia uma janela externa de onde se podia ver o que se passava lá dentro, Zé ficou alguns minutos observando. Ritinha voltou do almoço e dirigiu-se à sua mesa. Foi a primeira a chegar. Chegando lá pegou o envelope em mãos e foi abrindo. Recebia muitos envelopes diariamente que vinham das filiais ou mesmo de fornecedores. Mas ao levantar aquele pequeno saco de papel notou que havia algo mais do que documentos e, ao virar o envelope, escorregou lá de dentro uma pulseira prateada. Ficou curiosa pois sabia que já havia visto aquela pulseira em algum lugar. Não estava ainda ligando nada a nada. Abriu a carta, sentou-se e começou a ler. Zé podia ver, de longe, as lágrimas que escorriam pelo rosto de Rita. Estava escrito:
“Minha amada filha Ritinha.Sei que você deve estar chateada comigo pois desapareci há muito tempo e nunca dei notícias. Mas, por favor, leia essa carta até o fim.O que vou te contar pode responder muitas perguntas, mas creia, é a mais absoluta verdade.Quando morávamos na favela de Heliópolis onde você nasceu, eu trabalhava decentemente em uma transportadora de valores. Dirigia aqueles caminhões que levam dinheiro de um lado ao outro da cidade todos os dias. Sua mãe e eu éramos pessoas decentes e honestas. Mas fracassei querida. Sumi naquele incêndio porque fracassei. Me envolvi com maus elementos no trabalho e cometemos alguns delitos. Tudo o que eu queria era tirar você e a sua mãe daquela vida de miséria. Mas quando você já tinha quatro anos eu estava em perigo esperando que a qualquer hora a polícia viesse me procurar em casa. Tínhamos cometido um crime bárbaro. Como eu trabalhava na empresa e conhecia as rotas dos caminhões e as falhas do sistema, ajudei a executar o plano. Aí aconteceu o pior: em uma emboscada acidentalmente matei um colega de trabalho. Um pai de família como eu. Isso aconteceu um dia antes daquele incêndio que nos tirou de casa naquela noite horrível.Mas creia, minha filha. Eu fugi pra te proteger, e à tua mãe. Não a culpes. Ela também não sabia. Ela morreu pensando mesmo que eu simplesmente fugi. Entre todos os crimes que cometi na vida, deixar vocês desamparadas foi o pior.Entrei naquela vida de crime. Depois do incêndio me juntei com outros foragidos e cometemos muitos outros delitos. Era uma vida fácil e farta. Com dinheiro mas sem liberdade. Vivíamos fugindo. Mas mesmo assim, como eu usava sempre algum disfarce, acompanhei a tua vida por um tempo. Quando você ia para a escola à pé, muitas vezes fui caminhando atrás para que nada acontecesse. Muitas vezes te esperei na porta da escola. Sempre ficava vigiando a casa da tua avó, onde vocês moravam, pra me sentir pelo menos um pouco perto da minha família.Mas porque nunca voltei? Era muito perigoso querida. O fruto daqueles roubos que o bando cometeu era muito dinheiro e se alguém soubesse que eu tinha uma família, poderiam me chantagear usando vocês. O mundo do crime é muito cruel. Essa gente não tem medo de nada.Depois de alguns anos fugindo, finalmente fui preso, julgado e condenado. Como eu e a tua mãe não éramos casados no papel, a justiça acreditou que era solteiro e nunca foram avisar ninguém, até porque eu não queria que fossem.Mas mesmo na cadeia sempre tive notícias tuas. Eu tinha um advogado em quem confiava. Esse homem sempre me trouxe notícias tuas e da tua mãe. Fiquei sabendo inclusive que ela se relacionou com um homem casado. Fiquei com ciúmes sim, ao saber disso, mas nunca irado. Sabia que vocês precisavam de alguém para cuidá-las e para estar lá nos momentos difíceis. Pena que aquele homem morreu. Eu sei que ele te ajudou muito depois que a tua mãe faleceu.Aliás, estive no enterro dela. Consegui uma licença para sair da prisão por uns dias, pois já estava quase indo para o semi-aberto e fui ao velório. Me cortou o coração ver vocês duas lá. Ela morta e você quase morrendo de tanta dor. E o pior foi que eu nem pude te abraçar e te amparar, minha filha. Lá estavam várias pessoas que me conheciam do passado e, apesar do meu disfarce, não podia dar bobeira.O dia mais feliz da minha vida foi vê-la se formando querida. Como já estava no regime semi-aberto pude ir. Só não queria ser reconhecido para não ligarem você a mim. Ainda era perigoso. A tua formatura foi maravilhosa. Eu estava lá e chorei muito por não poder abraçá-la e nem tirar uma foto, como todos os formandos fazem junto com os pais.Depois disso, te segui mais algumas vezes, mas sempre com a desconfiança de que alguém estava atrás de mim. Depois que saí do regime fechado já tentaram me matar duas vezes mas escapei. Vou deixar essa carta com o meu advogado e amigo que vai dar um jeito de te entregar juntamente com a pulseira se algo acontecer comigo. Se você receber essa carta é sinal de que eu já parti dessa vida, meu amor. Não quero que fiques com medo, pois não há motivo para isso. Nem a justiça e nem meus antigos comparsas sabem da tua existência e é melhor que continue assim.O que espero que você faça é seguir em frente. Tocar a vida. A tua mãe te deixou a casa que era da tua avó e você tem um bom emprego. Não hesites em ser feliz minha querida. Onde quer que eu esteja quero te ver sorrindo.Fazer amigos é a melhor maneira de se relacionar com o mundo. Às vezes o mundo da gente parece pequeno. Temos que preenchê-lo com um pouco da vida dos outros. Esses relacionamentos vão nos fortalecendo e nos transformando em pessoas menos egoístas e mais abertas ao mundo. Você é muito bonita. Tem muito tempo pela frente. Destrave a porta do teu coração meu amor. Se eu estivesse aí contigo agora estaria te dando esses conselhos.E lembre-se meu bem. O teu pai não foi um bom exemplo mas sempre esteve pensando em ti. Você nunca ficou sozinha e nem vai ficar. Pois sempre estarei ao teu lado. Fica com essa pulseira. Leva sempre contigo. Isso vai te dar proteção. Não sei se você sabe, mas esse foi o primeiro presente que ganhei no dia dos pais e foi você quem me deu. Agora ela é tua. Sempre foi o meu talismã e agora vai ser o teu.Te amo querida. Sempre te amei e saibas que estarei sempre contigo.Teu pai que sempre esteve ao teu lado.João Batista Saturnino Alves.”
Rita largou a carta sobre a mesa e olhou pela janela. Zé entrou pela porta do escritório de Rita, foi até ela e lhe disse, estendendo a mão.
– Olá Rita. Eu sou o Zé, do almoxarifado.
Rita respondeu, ainda enxugando as lágrimas, estendendo a mão para o cumprimento.
– Eu sei quem o Senhor é, seu Zé. Todos lhe conhecem.
– O que aconteceu? Posso ajudar?
– Não é nada não. Eu só acabei de ganhar um presente e fiquei emocionada.
– É essa pulseira?
– Sim. Ela era do meu pai. Agora vai ser minha pra que ele esteja sempre comigo.
– Que bom que você gostou. Se precisar, estou sempre naquele almoxarifado. Conte comigo para o que precisar.
Em silêncio, Rita aproximou-se do Zé e lhe deu um abraço, dizendo:
– Muito obrigado seu Zé. Eu estava mesmo precisando falar com alguém.
Ficaram abraçados por quase um minuto, mas parecia uma eternidade. Ambos estavam precisando disso. Às vezes um simples gesto de carinho pode transformar uma vida.
E naquele fim de tarde, sabendo que o encanto havia se quebrado, Zé voltou para casa com a certeza de missão cumprida. Ele foi o elo que faltava para resolver o dilema. Escreveu a carta que o pai de Rita talvez sempre quisesse escrever. Deu um passo importante que aquele homem sempre quis dar, na visão dele. Fez um favor para Rita, para o João Batista e para si mesmo.
Não contou mentiras, só inventou verdades. Simplesmente fez o que devia fazer.
Conectou vidas, passados, presentes e futuros. Resolveu, de seu jeito, algo que parecia insolúvel. Tudo conspirou para que chegasse a esse fim.
Mais tarde, como fazia sempre, desceu do ônibus e foi contanto os passos até em casa. Simples assim.
…FIM